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O Doutor de Arouca

O Doutor de Arouca

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1957

HOJE VAMOS FALAR DO DOUTOR DE AROUCA. Talvez por que já passaram por ti muitos milhares de figuras bizarras não te seja possível localizá-lo na memória. Era um exemplo de criatividade, um homem que nasceu nos arrabaldes da Serra da Freita nos lados de Arouca onde a miséria era tanta que dificilmente algum ser como ele conseguiria matar a fome aos onze filhos que pôs no mundo. Então como as grandes dificuldades geram sempre maiores iniciativas, decidiu criar a personagem capaz de obter rendimentos que assegurassem o pão a ele, à mulher e ao bando de descendentes que ficavam à espera durante um mês pela chegada do progenitor que podia trazer abundância. Poucos se apercebiam da tragédia desse homem. Viam-no no palco do mundo a representar a comédia que concebeu sozinho e a nenhum ser vivo passou pela cabeça que aquele ser humano vagabundo das terras, empurrava o drama da sua existência sem uma queixa, sem mendigar fosse o que fosse para seu proveito próprio.

Era alto, magro e careca. De rosto comprido tostado pelo sol onde ao centro um nariz proeminente saltava à vista de qualquer um, empurrava uma carroça construída por restos de velho trem desmantelado. Os aros das rodas eram pintados de vermelho, o eixo em ferro, suportava uma espécie de barraca em madeira coberta por uma chapa de zinco colorida de amarelo. Na frente e sob um fundo azul-turquesa, tinha toscamente desenhado à mão, umas letras a branco que anunciam a actividade do artista:

— Dr. de Arouca Especialista Estrangeiro.

Pendurada num dos rebordos do aparelho circulante, uma corneta da tropa em metal amarelo polido, aguardava o momento de entrar em acção. Usava por cima de um fato castanho de fazenda às riscas em adiantado estado de decomposição, uma bata branca salpicada por toda de nódoas de gordura, azeite ou banha de porco, que lhe chegava lá abaixo ao meio das canelas das pernas. A camisa era branca rota e suja nos colarinhos; no pescoço, um laço vermelho com pintinhas brancas enfeitava esta figura ridícula. Calçava os pés quarenta e quatro com umas alpercatas galegas de flanela vermelha demasiado amaricadas no conjunto notável da vestimenta do homem. Bem se esforçava ele por parecer um doutor mas, a qualquer cidadão mais atento o que mais parecia na verdade, era um qualquer cortador de carnes verdes de matadouro clandestino.

Empurrava a carroça das virtudes curandeiras no caminho por baixo das fragas da Abitureira ao cimo de Cancelos e já perto da casa do Zé Maria cantoneiro, mesmo a esbarrar com Sebolido. Curvado para a frente, pés fincados no chão de terra batida, a suar como um toiro, arrastava a pesada carroça portadora de milagres. Já por alturas da padaria do Álvaro onde o caminho se torna mais suave e se alarga o horizonte, parou a viatura e enxugou a testa suada com um lenço tabaqueiro vermelho às riscas brancas e pretas.

O silêncio era pesado em Sebolido. A aldeia em peso dedicava-se aos trabalhos da rega dos milhos nos campos dispersos pelas fraldas da serra da Boneca. Os sons que perturbavam este ambiente rural, era de cigarras a gemer nos montes e de melros em franca e aberta cantoria. De repente explodiu na quietude da tarde um som estridente e desafinado de gaita de fanfarra de bombeiros. Os galos do Jerónimo, surpreendidos, responderam ao inaudito desafio e iniciaram uma cantoria permanente. Os cães do Pinto desataram num ladrar irritante. A galinha preta do Valdemar que depenicava as couves do Cipriano correu aflita a proteger a ninhada recém-nascida. Aquele som estridente voltou a fazer-se ouvir no povoado e já Gondarém e Midões do outro lado do rio, se sobressaltou com tamanha algazarra.

A carroça ia andando lentamente a percorrer os cem metros que faltam para alcançar o centro do Outeiro das Cortes enquanto o doutor ia soprando no endiabrado instrumento. O povo começou a aparecer aos postigos das casas e já muitas crianças acompanham o inesperado circo correndo atrás numa gritaria medonha.

Parou por baixo da tília, sentou-se no banco de pedra de granito a aguardar que o povo se juntasse e ficasse a saber das últimas novidades da medicina mundial. Quando umas vinte pessoas, homens e mulheres já se interrogavam acerca da actividade do homem, entrou em acção o propagandista. Usava um funil a servir de amplificador de maneira que todos pudessem ouvir o seu improvisado, eloquente e institucional discurso:

— Acabo de chegar do estrangeiro e o que tenho para vos dizer pode ser a salvação de muitas vidas. Alguns dos senhores cavalheiros e das senhoras madames por acaso não padecem de males desconhecidos e incuráveis? A quem dos aqui presentes e não presentes não dói uma perna, um braço, a barriga ou tem queda de cabelo? Por acaso nenhum dos senhores cavalheiros ou das senhoras madames tem dificuldade em obrar? Por acaso nenhum dos vossos filhos tem piolhos, pulgas ou até carraças? Por acaso nenhum dos senhores cavalheiros ou das senhoras cavalheiras, não trás uma praga de percevejos ou lêndeas? Acabo de chegar do estrangeiro e aqui na minha farmácia ambulante trago praticamente remédio para todos os males.

Numa instantânea paragem para respirar, engoliu em seco e continuou:

— Não, não é banha da cobra não senhor, eu não sou contrabandista, sou um especialista estrangeiro encarregado pelo Estado para curar as pessoas. Isto é um xarope inventado há um mês na costa do Oriente Médio, na terra onde as ruas são calcetadas com sêmeas, as fontes deitam ora vinho tinto ora vinho branco e andam sempre a passear nas ruas, porcos, metade cozidos e metade assados com uma faca e um garfo espetados no cerro. Ali teve lugar esta invenção maravilhosa que já salvou muitas vidas mas infelizmente não as vai poder salvar todas porque só uma pequena quantidade de produto se recuperou do naufrágio do navio que trazia este potente remédio.

O povo começou-se a agitar, nos olhos arregalados de alguns, um brilho de alegria principia a florir. As mulheres em cochicho, contavam umas às outras os males terríveis de que padeciam. Uma atmosfera de urgência hospitalar estabeleceu-se ali. O Serafim começou a mancar, o Simão deitava as mãos às costas e fazia uma cara de horrível sofrimento, o Ribeiro coçava ao fundo da barriga, nas partes, e fazia também um ar de consumição, a Rita do Lopes acachapada, mijava atrás da tília e o cão do Luís Manco ferrava na perna do Tono Carriço. A filha do Mocho caiu com o fanico e esperneava-se histérica no chão de cascalho.

— Dá-lhe água gelada! — Disse o Bernardino.

— Qual água gelada qual carapuça — diz o Barnabé. — Do que ela precisa é de umas varadas nesse corpo a derreter com cio!

— Cala-te malcriado podia ser tua irmã! — Diz o Paulo irritado.

— Vão ver então a mercadoria!

O especialista já se apercebera de que estavam reunidas as condições favoráveis à venda do famoso medicamento e começou a tirar de uma lata de bolacha Maria, uns frascos usados de óleo de fígado de bacalhau recolhidos numa entulheira qualquer e que agora apareciam cheios de um líquido cor de melancia.

— Por apenas vinte mil réis qualquer senhora, qualquer cavalheiro, pode por fim ao seu sofrimento. Não estou aqui para enganar ninguém, e a prova disso é a garantia que dou a este formidável produto. Se qualquer senhora, qualquer cavalheiro tiver alguma reclamação a fazer, daqui por um ano, nesta mesma hora, neste mesmo local, poderá trocar esta maravilha por uma pomada ainda melhor!

— Chegue-me dois! — Gritou o Angolano!

— Não cavalheiro, primeiro é para aquele senhor com a marreca nas costas, o cavalheiro não vê que a criatura está a sofrer? — Diz o doutor apressado em recolher a nota de vinte que o doente tinha na mão.

Após alguns minutos de feira e o famoso produto esgotou na carroça. Dez frascos de água colorida eram o conteúdo da lata das bolachas.

— Cheira a bagaço! — Diz o Marreco com o nariz espetado no frasco.

— Não cheira a bagaço nenhum cavalheiro, cheira a aguardente dos Pirenéus preciosidade rara das Américas Latinas!

O Marreco calou-se envergonhado pela ignorância demonstrada e a carroça afastou-se em direcção a Vale-dos-Travessos.

Chiavam as rodas a esmagar um eixo sem lubrificação na subida da costeira do Penedo Gordo e o Dr. de Arouca num esforço enorme empurrava aquele monte de sucata portador de inventos multinacionais sem vacilar um segundo que fosse. Parou na beira do caminho já com a povoação no horizonte. Passou o lenço tabaqueiro no pescoço suado e preparou-se para nova invenção. De um saco habilmente guardado na viatura, retirou latas vazias de graxa Rosete, encheu-as com banha de porco que escondia numa lata maior e fez-se de novo ao caminho. No espaço quase despovoado da serra, soou novamente a maldita gaita da tropa e o eco esganiçado estoirou como trovão no calmo entardecer. Juntou-se o povo e o contrabandista reinicia o repetitivo discurso:

— Acabo de chegar do estrangeiro e o que tenho para vos dizer pode ser a salvação de muitas vidas. Alguns dos senhores cavalheiros e das senhoras madames por acaso não padecem de males desconhecidos e incuráveis? A quem dos aqui presentes e não presentes não dói uma perna, um braço, a barriga ou tem queda de cabelo? Por acaso nenhum dos senhores cavalheiros ou das senhoras madames tem dificuldade em obrar? Por acaso nenhum dos vossos filhos tem piolhos, pulgas ou até carraças? Por acaso nenhum dos senhores cavalheiros ou das senhoras cavalheiras, não trás uma praga de percevejos ou lêndeas? Acabo de chegar do estrangeiro e aqui na minha farmácia ambulante trago praticamente remédio para todos os males. Não, não é um xarope qualquer que só provocaria disenterias e até podia matar as criancinhas, eu não sou contrabandista, sou um especialista estrangeiro encarregado pelo Estado para curar as pessoas. Isto é uma pomada rara inventada há um mês na costa do oriente médio, na terra onde as ruas são calcetadas com sêmeas, as fontes deitam ora vinho tinto ora vinho branco e andam sempre a passear nas ruas, porcos, metade cozidos e metade assados com uma faca e um garfo espetados no cerro. Ali teve lugar esta invenção maravilhosa que já salvou muitas vidas mas infelizmente não as vai poder salva-las todas porque só uma pequena quantidade de produto se recuperou do naufrágio do navio que trazia este potente remédio…

Já quase noite cerrada e às portas de Vilarinho, encostado à carroça portadora de milagres, o Dr. de Arouca olhava para ti que parecias um lago e imaginava-se em casa à beira dos filhos enquanto secava com o lenço tabaqueiro, as lágrimas que lhe caíam dos olhos.

Publicado originalmente in Palavras – Conversas com um rio, edição Edium Editores, março 2011.

SOBRE O AUTOR:
Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do Douro; Douro Inteiro;  Douro Lindo; A Ninfa do Douro; Palavras –  Conversas com um Rio; Fado Falado –  Crónicas do Facebook e Amanhecer (Poesia). Colabora com o Correio do Porto desde junho de 2016.

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