1838
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O Lopes

O Lopes

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NADA DO QUE É GRANDEZA TE FASCINA. Convives com todas as gentes da mesma forma que um pai convive com os filhos. Apoquentas-te quando adoptam certos comportamentos que julgas menos certos mas nem por isso impedes as partidas e chegadas, as dores e os sofrimentos, as alegrias e as tristezas por que sabes que todos temos um destino para cumprir. Quantas vezes te revoltas em vão sabendo de antemão que é inútil tentar impedir a caminhada do mundo, ele tem que evoluir, faz parte da sua razão de ser, foi criado para obter a perfeição, a harmonia e o equilíbrio enquanto durar. Manifestas-te alheio às formas de vida que os homens adoptam para atingir os mesmos fins e permite que experimentem as mais variadas emoções e condutas sem lhes apresentar obstáculos de maior que impeçam esse legítimo deslumbramento.

Eu conto-te uma história que o meu pai me contava e tenho a certeza que corresponde a um acontecimento verdadeiro porque deixou marcas nos campos.

O Lopes andou pelo Brasil trinta anos. Chegou lá com uma mão à frente e outra atrás, teso como um virote mas carregando no peito uma enorme e inabalável força de vontade de enriquecer e voltar de seguida à terra onde nasceu. Embarcou para fugir às inclemências da guerra das guerras em 1914, conflito mundial que deixou estas bandas num autêntico campo de concentração sem alimento e também para evitar ser mobilizado para África onde tropas portuguesas já combatiam os alemães nas fronteiras.

Foi do porto de Leixões que largou num cargueiro inglês e deixou para trás Sebolido a sua terra natal e a ditosa pátria entregue a si própria.

Enquanto outros emigrantes portugueses se dedicavam ao fabrico de pão que abastecia a cidade do Rio de Janeiro, ele começou por recolher embalagens usadas, sacos de transporte de cerais, café e outros produtos de importação que ali chegavam a granel.

Foram trinta anos a amontoar lentamente a fortuna que viria mais tarde a transformar em libras de ouro. Voltou rico e a primeira coisa que fez logo que pisou terra firme, foi comprar quintas e terrenos florestados no monte.

O Lopes vivia bem e, embora entrado na idade sem grande dificuldade, acabou por casar com uma fidalga mantida pelos pais em reserva, aguardando o momento de a entregar a um homem de teres e haveres que lhe garantiria vida boa e farta. Muito mais nova que ele, a Serafina espalhava pela vida do Lopes enorme vitalidade de corpo que acabou por lhe dar dois filhos varões.

Poucas ou nenhumas vezes o Lopes saiu de Sebolido, da quinta que produzia vinho, milho e outros produtos que garantiam a subsistência da família bem como mantinha com pasto, quatro juntas de bois obreiros no lavrar dos campos e motores dos carros de madeira que transportavam todos os materiais necessários ao perfeito funcionamento de uma casa de lavoura como a dele.

Não há criaturas eternas, tudo o que nasce morre e, como tal, ricos ou pobres, todos acabamos mais tarde ou mais cedo por esticar o pernil abandonando tudo o que amealhamos nesta vida. Foi o que aconteceu ao Lopes, com oitenta e nove anos feitos em Agosto, viu por altura da feira de S. Martinho em Penafiel, o anjo da morte a rondar-lhe a casa que tinha mandado construir no intuito de vir a ser um hotel que albergasse os trabalhadores do caminho de ferro que nunca chegou a passar por aqui, à espera que desse o seu último estremecimento para então lhe levar a alma, sabe-se lá para onde mas de certeza que não para o maravilhosos céu que o padre António lhe garantia sempre que contribuía com avultada quantia para a obra da igreja.

Pressentido o fim, sentido aquele aperto na garganta característica dos agonizantes, mandou chamar os dois filhos à cabeceira da cama.

— Estás aqui Bernardino? Tu, Manuel, também estás? — Os olhos já só lhe distinguiam vultos, tão cegos como na hora do seu nascimento, deixaram que fossem os ouvidos sozinhos a identificar a sua criação:

— Estou aqui pai, sou Bernardino. — Eu também estou aqui, sou o Manuel, não fale, não se esforce tanto.

A resposta chegou entrecortada pela tosse e o inesperado aconteceu então:

— Ide ao Courel, ide ao Courel — gritava o moribundo.
— O que é que tem no Courel pai? — Perguntaram os dois em simultâneo.
— Libra de oiro, três panelas cheias de libras de oiro.
— O Courel é muito grande pai, diga o sítio onde as enterrou.

O Lopes ficou alguns momentos sem responder, de olhos cerrados pensou-se que tinha morrido.

Os dois filhos possessos pela cobiça já não se importavam com o doloroso esforço do pai para falar, sacudiam-lhe os ombros, sempre a perguntar:

— Diga lá pai, onde enterrou as libras de oiro, diga!

O velho arregalou os olhos e já na agonia final interpelou-os:

— E se eu não morro!?

Estremeceu e ficou como um passarinho.

Os filhos correram aos campos munidos de ferramentas capazes de rasgar a terra, esburacaram-na durante meses mas as panelas com as libras nunca foram encontradas. Parece que o Lopes tinha um outro propósito em mente e, o mais certo, é ter enterrado o ouro bem longe da cobiça dos seus descendentes.

Por Manuel Araújo da Cunha publicado originalmente in Palavras – Conversas com um rio, edição Edium Editores, março 2011.

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