UM pedaço de luar aparece por entre a negrura das nuvens carregadas de chuva que cruzam o céu subindo dos lados do mar por cima da praia da Madalena e reflecte-se moribundo na água barrenta do Douro. O oceano matizado pelo doirado do rio, agita-se bramindo com um louco a descarregar uma fúria colossal nos paredões da Cantareira, espraiando-se depois em devastadores rendilhados amarelos e brancos por sobre as avenidas da Foz que desertas, se deixam engolir no turbilhão de água, pedras e espuma. É muito mar, são os elementos naturais conjugados num processo de destruição sem precedentes a impossibilitar qualquer tipo de navegação mesmo de urgente socorro a náufragos e só o Lolas, piloto da barra, todo metido dentro de um fato de oleado amarelo, cobrindo a cabeça com um chapéu do mesmo material e cor, ousa enfrentar semelhantes poderes.
É uma estátua petrificada e quase consolidada ao cunhal granítico da capela de S. Miguel O Anjo a desafiar sozinho, as leis da natureza. Quando a vaga se levanta num ímpeto mais forte e bruscamente cobre o monumento estilhaçando os vitrais da casa dos Pilotos ali ao lado, aquela indecifrável figura, move-se então para se encolher um pouco mais abrigado no precário refúgio.
Ao longe, um navio a quem não foi permitida a entrada no porto de Leixões, luta desesperadamente com a fúria da tempestade e as luzes do mastro que assinalam a embarcação, aparecem e desaparecem na fundura das vagas em perigosa oscilação.As gaivotas permanentes habitantes dos areais do Cabedelo, já há muito migraram para montante do rio na tentativa de fugir aos tormentos devastadores da tormenta.
O velho marinheiro perscruta um horizonte pardo num alerta permanente a calcular as artimanhas do mar, do rio e dos ventos. Ele conhece o sítio, já são muitos os anos a meter-se às ondas em operações de salvamento de pessoas vítimas de naufrágios ali na boca da Barra e no restante troço fluvial-marítimo em que o mais violento foi o da lancha de Avintes em que pereceram vinte e nove pessoas.É preciso estar atento, a todo o momento poderá acontecer a tragédia. Aqueles olhos pequenitos onde já não mora a luminosidade de outros tempos, viram pasmados soçobrar navios e sucumbir pessoas em desgraças que neste local aconteceram ao longo da sua também já comprida existência.
É quase meia – noite altura em que o rio quer adormecer e, nas profundezas da água desprendem-se os corpos dos afogados que vão aparecer por instantes intactos a boiar à superfície. O sono do rio é muito curto, só o tempo necessário para que as almas dos mortos se resgatem do forçado cativeiro e possam subir até ao céu. As noites do Douro são povoadas de densos e impenetráveis enigmas que jamais algum ser vivo conseguiu deslindar. São antigas as lendas, perdem-se na antiguidade da milenar história dos habitantes das beiras da água e, apesar de pouco valorizadas, continuam vivas e a passar de geração em geração.
Quantos incautos ignoraram ou menosprezaram os conteúdos fantásticos e alucinantes dessas antigas crenças e foram eles próprios vítimas perdidas na profundidade da quase sempre aparente mansidão do rio. Quando a lua cheia se agiganta no céu, adensam-se os mistérios, as funestas campas abrem-se lá em baixo e, como se movido por um poder oculto, o rio resplandece em labaredas e tonalidades tão fantásticas que nem o mais brilhante pintor as conseguiria transmitir nas pinceladas de um quadro. O poder desta toalha de água metamorfoseia-se então na colossal força do firmamento celeste e, incrivelmente o inesperado acontece.
Todo o universo plana em sintonia com a terra num ápice de tempo e, ocorre então uma espécie de encantamento, o processo da troca de misteriosas energias que podem perturbar tanto os mortais ao ponto de perderem a vida e até a própria alma.Todo o Douro, desde a Foz a Barca de Alva tem memórias de violentos e inexplicáveis acidentes; uns antigos outros mais recentes mas nem por isso menos devastadores. O Lolas recorda o mais terrível e estranho dos naufrágios. Muito embora ainda não tivesse nascido, foi-lhe ministrado cedo o relato dessa imensa tragédia. São cicatrizes tatuadas no corpo do rio que nada nem ninguém consegue apagar.
– Era domingo, dia adequado à realização de festas e outros arrojados eventos. A barca do Castelo, Bateira de transporte que fazia a ligação entre as duas margens do rio tinha capacidade para cinquenta pessoas mas, foram oitenta, quase todos fidalgos, provenientes de Cinfães, Arouca e Castelo de Paiva que embarcaram já noite alta no cais de Bitetos ao fim de grande festividade na quinta de Vilacetinho em Alpendurada. O rio estava manso e reflectia já a lua e as estrelas quando a barca lentamente sulcou as águas na travessia. Havia animação a bordo e os restos da festa consumiam-se ainda no meio do Douro e ninguém se apercebeu que era meia – noite e que as almas dos desaparecidos queriam subir ao céu. Nunca se soube com precisão o que se passou naquela hora dramática, sabe-se que se ouviram lancinantes gritos e pedidos de socorro durante algum tempo e depois só a negrura da noite e o silêncio responderam às chamadas de terra. Todos pereceram nesse trágico naufrágio e os seus corpos nunca foram encontrados.
O rio Douro é feito de sonhos, de segredos e também de estranhas e complexas magias. As recordações do velho comandante avivam-se em noites bravas como esta, de cheias, de fortes chuvas e de terríveis vendavais. Então como visão impossível de deter, surgem-lhe na mente todos os dramáticos momentos do passado:
– Batiam compassadas no sino da igreja de Santa Maria de Sardoura as doze badaladas e, nesse preciso momento o rio tornou-se um espelho que brilhava reflectindo mais uma vez a lua e as estrelas e, os fogos-fátuos, pareciam labaredas de fogo a surgir da liquida transparência. Acontecia a hora mágica; o momento dos mortos. Ninguém pode perturbar o sono do rio nesta hora de redenção, quem o ousar fazer, perecerá nas suas águas e as almas desses violadores dos segredos do Douro, nunca encontrarão o caminho da luz e vaguearão eternamente nos locais desertos onde as sombras da noite mais se acentuam.
O Vagaroso pescava por baixo do pilar norte da centenária ponte de ferro e pedra de Entre-os-Rios. As canas da Índia, vergavam na ponteira resistindo ao esforço da chumbeira de vinte gramas fixada na extremidade da linha e a bailar nas profundezas da água do rio. No céu escuro como o de hoje, uma lua enorme decifrava de vez em quando os contornos deste vale imenso proporcionando espantoso cenário só apreciado por fantasmas e por este pescador nocturno. Corria o mês de Março, tardavam os primeiros alvores da Primavera e chovia há mais de dois meses uma chuva estupidamente persistente que parecia nunca mais abandonar o céu e a terra. Debilitado pela idade, o velho marinheiro queria matar o tempo que o reumatismo impedia de passar na cama em repouso prolongado nessas longas invernias. Oitenta anos de vida dura deixaram marcas irreparáveis no corpo e na mente deste homem que o amor enganou. Movido pela força de uma arte antiga, arrepiava caminho até a este recanto mais abrigado do rio onde ficava horas a pescar, a ver o rio em chamas, a falar com mortos e a pensar na vida que lhe fugiu por entre os dedos de umas mãos calejadas.
Tempos de outrora onde se perderam as muitas recordações deste ser ribeirinho. Recolhidas no peito, intransferíveis, magoadas, a marcarem o ritmo de uma vida que teima em se extinguir, afloravam-lhe à mente sem aviso prévio martelando-lhe o cérebro como anúncio de televisão. Os dias, os intermináveis dias, que gastava arrastando os pés de lado para lado neste cais solitário, já não proporcionavam o prazer do passado. Como se um vendaval enorme varresse aquele pedaço de chão, viu serenamente partir um a um, aqueles e aquelas a quem amou e que enfeitaram o percurso dos longos anos que viveu até agora.
Os amigos que fez quando chegou trazido pelas mãos de um destino que lhe foi cruel, os companheiros que deixou no Castelo sua terra primeira, eram ainda sombras permanentes a povoar as noites que lhe faltavam viver. Iscava o anzol com pedaços de sardinha e esperava paciente que algum peixe se deixe prender na aguçada armadilha enquanto o alucinado pensamento ressuscitava cenas que julgava já ter esquecido completamente. Pareceu-lhe ver na fantasia do traiçoeiro cérebro, a negra silhueta de um navio encostado ao cais do outro lado. Conseguiu mesmo vislumbrar um nome marcado na linha de proa do barco; Albatroz. Como flash que lhe desventrasse o cérebro, penetrou angustiando na visão:
– Noite tranquila, aquela em que uma lua fugidia produzia efeitos magníficos no liquido lençol. Noite calma só perturbada pelo cochichar das rãs no regato de Fonte Nogueira e por uma brisa suave e demasiado leve para agitar o lustre das águas. De repente ele aparece na curva do Remesal. Era um navio de luz resplandecente de velas erguidas e proa elegante e afiada a rasgar o ventre deste rio doirado.
– É o Navio dos Mortos, murmurou o Vagaroso enquanto apressado manejou o aparelho a recolher a linha. Ele conhecia as manhas do rio que lhe provocavam alucinações e sabia sempre quando os fantasmas dos falecidos resolviam navegar por aqui perturbando-o ao ponto de se julgar também um defunto. Não houve tempo de escapar e ficar a salvo desta sinistra aparição. A embarcação avançava muito mais depressa que a sua precária perícia de velho. Encolheu-se a um canto receoso e ouviu assustado os gemidos lancinantes da tripulação em desespero. O rio agitou-se repentinamente e, lá em baixo, nas Pedras de Linhares, não se sabe se por que artes mágicas, levantou-se um terrível ciclone.
O fantástico barco parecia que a todo o momento iria naufragar quando a proa mergulhava aflita num turbilhão de espuma. Rangiam as estruturas ferrosas prestes a ceder a tamanho esforço. O rio em agitação inenarrável, mais parecia o mar do Cabo das Tormentas. Havia braços torturados, pessoas presas nas amuradas a pedir socorro. Os gritos horríveis dos tripulantes e passageiros rasgavam a noite cobarde e traidora. O céu era cinzento cor de chumbo e apagaram-se as luzes no cais do Torrão.
O pescador desvairado ensaiou uma nova retirada mas o vento forte não o deixou avançar. Encolheu-se mais dentro da roupa e, de olhos arregalados viu esfumar-se à distância de uma mão, o barco fantasma nas águas do Douro. Primeiro o enorme casco tombou ferido de morte na liquidez do rio, depois os mastros cruzados afundaram também numa agonia desesperada e lenta. Calaram-se os apelos, cessaram os gemidos e o Vagaroso fechou os olhos e tremeu de medo e de perplexidade. O rio sossegou, o vento também amainou e só a chuva louca continuou a massacrar o homem.
– Que pesadelo, disse o Vagaroso enquanto retirava do bolso das calças um lenço com que secava a humidade dos olhos.
– Também tenho sonhos desses! Todas as noites vejo lume na água do rio acolá em frente à Afurada, diz o Lolas. O doutor Adriano diz que é próprio da idade, que são sonhos de velhos provocados pela solidão.
– O que é a solidão Lolas, perguntou o Vagaroso!
– A solidão é esta sensação de vazio e isolamento. É a gente querer uma companhia ou querer realizar alguma actividade com outras pessoas e ninguém nos dar ouvidos. É precisar como nós de algo novo que transforme e encha os nossos dias! A solidão Vagaroso, é a gente só poder falar com mortos. O outro calou-se sem perceber bem ao certo o que é a solidão e ficou a senti-la agarrada na alma, a despedaçar-lhe todos os sorrisos.
O mar continua a devastar a Cantareira arrastando pedras enormes que deposita no meio da rua e as palmeiras da Meia Laranja vergadas até quase ao chão, lutam desesperadamente contra a fúria dos elementos. O rio continua agitado, reflecte a lua cheia e as estrelas, a meia-noite é breve e o Lolas tem de regressar a casa antes que soem as doze badaladas porque ele sabe que as almas dos afogados querem subir ao céu.
Publicado in Dourolindo
SOBRE O AUTOR: Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do Douro; Douro Inteiro; Douro Lindo; A Ninfa do Douro; Palavras – Conversas com um Rio; Fado Falado – Crónicas do Facebook e Amanhecer (Poesia). Colabora com o Correio do Porto desde junho de 2016.