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O padre Luís

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NAS TERRAS DE MELRES existe uma igreja centenária onde os crentes descarregam pecados, pedem fervorosamente curas para as suas doenças, rezam orações intermináveis com o objectivo de agradar a Deus e assistem a missas diariamente. Todos mergulhados nos mistérios da sua fé, entregam-se de alma e coração ao divino cumprindo rituais mais antigos do que se possa imaginar.

Não sei se tu rezas mas vejo-te muitas vezes mergulhado em ti próprio numa postura que só quem ora assume perante a vida. Deves ter no teu coração feito de água, as mesmas emoções que assaltam os humanos e, quando te sentes violado nos teus direitos, quando os homens despejam em ti detritos que envenenam e matam ou simplesmente quando te sentes triste e sozinho abraçado a uma solidão milenar, decerto que te viras para o céu aflito e procuras nesse lugar etéreo uma luz que ilumine a humanidade que não te respeita e pedes a um deus que só tu conheces, que realize o milagre de a fazer despertar da ignorância que até ela assassina.

Falo-te hoje do padre Luís que tu bem conhecias. Não era um homem santo como se poderá pensar, era um ser humano como todos os outros com a diferença de ter empreendido a missão notável de se ter doado ao sacerdócio de alma e coração desprezando outras formas de vida que por certo lhe teriam dado mais prazer. Tinha por ti um sentimento solidário, admirava-te e muitas vezes, principalmente nos momentos em que se sentia só e abandonado, era contigo que confidenciava as suas inquietações e o seu imenso desespero. Sei que o escutavas em silêncio, que fazias aqueles rendilhados de espuma na areia da praia e, algumas vezes usando de extrema violência, subias pela terra dentro, inundavas a igreja e nem os santos escapavam ao teu abraço líquido. Tens uma forma estranha de rezar, um jeito muito próprio de mostrar ao mundo que sentes as muitas ameaças que te fazem alguns cujo modo de vida é destruir o berço onde nasceram. Recordemos então o homem da batina preta que nunca teve outro agasalho senão esse singelo pedaço de pano negro que o cobria até aos pés.

Foi penoso vê-lo naquela manhã florida de domingo, vacilante, agarrado à santa Pedra de Ara, velho e carcomido pelos anos cambaleando doente no exercer da última missão que o juramento soleníssimo que fez na juventude o obrigava mais uma vez a cumprir.

Nesse tempo era um moço alto e forte, bem constituído e irradiava força no brilho esperançado dos olhos. Estendido aos pés do bispo do Porto, humilde entregava os votos de total entrega às coisas da igreja. E assim foi durante sessenta anos. Viveu na solidão dos dias e das noites tendo apenas como consolo a fé que tinha professado. Havia nos seus olhos claros como claras são todas as esperanças, uma luz própria, uma chama acesa como a de um farol que guiasse os barcos perdidos num imenso oceano e, era esse brilho de bondade que permitia que se aproximassem dele todas as almas sedentas da ternura, de um abraço, de uma palavra de carinho que amenizasse as muitas mágoas que a vida produz.

Como se fora um círio a que faltasse o alimento combustível, apagava-se ali na casa de Deus que também foi sua, lenta e inexoravelmente.

Empalidecido como um chão de Outono, erguia-se ainda das cinzas ilustre e digno e, o seu olhar cansado e bondoso, desceu e pousou como uma bênção sobre aquelas almas numa última prenda generosa e santa. No centro de Melres, naquele lugar solitário onde tantas vezes desanimado e triste invocou as palavras de Cristo: — Pai, se puderes, afasta de mim este cálice, nessa pequena igreja onde a fé se expandia em cada oração, em cada dia dos imensos anos do seu sacerdócio, acontecia o mais terno, sublime e heróico acto da vida de um homem.

Ele que tantas vezes percorria os lugares da freguesia levando os últimos sacramentos de consolo aos agonizantes, deixava entregue à ferrugem toda a sua riqueza, os restos da motorizada que o transportava, moribunda como ele, e era agora tão-somente um monte de sucata a apodrecer debaixo do beiral da residência paroquial onde as andorinhas fazem ninho.

Por muito que fosse o seu desânimo, a precariedade da sua existência, nunca a sua voz se levantou dali de cima do altar para pedir o legítimo alimento do corpo, uma batina nova, uma corrente para a motorizada ou o concerto da residência que desprezada caía de podre. Apenas sorrisos e sabedoria pairavam no templo da sua fé no espaço que delimita a verdade da ignorância das coisas sagradas.

O povo devoto que ocupava quase todo o anfiteatro do agora recuperado e feito moderno templo substituto do centenário onde ele tinha gasto os restos da vida a falar das coisas sagradas, pressentia emocionada o crepúsculo da ave de Deus.

Ajoelhou-se dolorosamente agarrado à pedra do altar e ficou minutos prostrado ali como navio a lutar com medonha tempestade, recusando soçobrar ao ímpeto da tragédia que o tentava abater. Ergueu-se a custo ajudado pelo sacristão e pausadamente começou a santa missa o recordar da Paixão de Cristo que neste instante não podia estar melhor representado na terra. Ergueu o Cálice consagrando o vinho como se fora ele o próprio Senhor que aqui viesse nesta hora dramática prestar-lhe a derradeira homenagem o último agradecimento pela dádiva de uma vida de solidão.

Olhei respeitosamente e comovido o homem que me guardou no coração sem nunca me ter perguntado quem eu era; que espicaçava a minha curiosidade filosófica como um pai que explica a uma criança a razão do fascínio das estrelas. Olhei-o ainda no sair da igreja matriz como uma noite negra que descesse repentinamente sobre a terra e deixasse só escuridão nos corações.

Enquanto a banda musical de Melres tocava o Requiem Aeternam de Mozart, o mundo acabava de perder um padre e a santa igreja de Pedro tinha ganho mais um santo. Vi-o prostrado no caixão sereno, de mãos em cruz sobre o peito como irradiando toda a paz que falta no mundo, como quem sonha feliz o seu último sonho.

Nessa hora dramática olhei para ti e vi-te ajoelhado com os olhos da água cobertos de emoção, e, como só tu pode alcançar o divino, ouviste distinta a voz que vinha do Céu:

— Luís… Luís, acorda meu filho, anda ver o teu pai!

Por Manuel Araújo da Cunha publicado originalmente in Palavras – Conversas com um rio, edição Edium Editores, março 2011.

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