MANHÃ tranquila de Maio! A cidade, virada ao vento leste que vem do Mar Mediterrâneo e anuncia ondas de calor antecessoras das nuvens carregadas de chuva, espreguiça-se ainda nos banhos da suave luz que a ilumina.

Um casal de idosos descia vagarosamente a Rua Formosa. Decerto amanheceram juntos ali perto, talvez em Sta. Catarina, rua emblemática que marcou gerações, e vieram percorrer os lugares que conservam parte das suas memórias de uma vida.

O homem, sujeito bem-trajado, de fato completo de cor creme, alto e espadaúdo, ligeiramente curvado para a frente no andar, apoiava-se com a mão direita numa bengala com punho de prata trabalhada e, num encosto de braços, amparava-se no ombro da mulher. Senhora de estatura média que cobria o corpo com um vestido discreto de cor branca, no pescoço um pequeno lenço-vermelho juntamente com um colar de pérolas champagne, completavam o look de elegância que lhe realçava a beleza dos olhos castanhos e lhe valorizava a auto-estima. Metia o braço direito no dele, dependurado ao longo do tronco talvez porque já perdera a mobilidade, ou fora vítima de um sopro de avc, tão frequentes na idade avançada.

As reduzidas dimensões da calçada revestido a mosaico de basalto e vidraço, junto ao edifício que alberga a mercearia Pérola do Bolhão há mais de cem anos, não permitindo que nos cruzássemos sem nos abalroarmos uns aos outros, juntou num instante uma dezena de pessoas encravados ente o transito e o edifício, à espera de passagem. Dei-lhes os bons dias, juntando ao cumprimento um sorriso no momento em que ficámos frente a frente, porque era impossível descer ao piso de alcatrão onde os carros seguiam em fila, a subir em direcções incógnitas.

– Muito bom dia, disse eu, inclinando ligeiramente a cabeça em meia vénia. Ela olhou-me com aqueles olhos que  não perderam a sua luz magnífica, sorriu com ar angelical e a boca pequena, parecendo uma rosa florida que segurava uns lábios pintados de vermelho, abriu-se para responder à minha matinal saudação:

– Muito bons dias, senhor!

Apressadamente, apesar da sua vulnerabilidade física, ele segurou a bengala debaixo do sovaco e levou a mão à aba do chapéu de feltro e, com dois dedos enrugados, simulou o cumprimento que só um cavalheiro do Porto ainda sabe fazer, ao mesmo tempo que se entreolharam estupefactos. Certamente foi a primeira vez que alguém, saído da massa anónima com quem se cruzavam todos os dias durante os passeios matinais, os olhou com os surpreendentes olhos da fraternidade já praticamente extinta.

Seguidamente, o insólito aconteceu. Ela puxou-o para baixo pelo braço onde vinha romanticamente apoiada, ele curvou-se ainda mais e beijaram-se no rosto um do outro, a sorrir.

Há tanta serenidade no Outono da vida, nesse tempo de renovação e de mudanças em que prescindimos das coisas que já não nos servem e as trocamos por valores muito mais importantes. Transformamo-nos em atentos vigilantes da Natureza onde tudo é tranquilidade e paz. Tal como o rio Douro, de todos o mais violento dos cursos de água que Portugal tem e que depois de percorrer metade de dois países, vem morrer tranquilamente aqui perto, no mar e à vista da cidade que nos une, também nós nos desvanecemos como pétalas de flores tangidas pelos ventos. Não sem antes assistirmos ao declínio dos prazeres corporais que nos proporcionaram maravilhosas sensações, mas que, tal como outras que nos animaram no passado, substituímos pela amizade, pelo carinho, pela ternura e fortuitos beijos de afeição nos rostos uns dos outros, capazes de deslumbrarem multidões.

Ecoaram palmas na Rua Formosa que tem o quase bicentenário Mercado do Bolhão, monumento cultural de grande interesse preso nos dedos das mãos, vindas da espontânea e pouco habitual generosidade de gente que passava nessa altura. Alguns, turistas de raças diferentes, que provavelmente nunca antes se tinham visto uns aos outros, talvez pessoas da imensa mole humana que todos os dias visita a cidade à procura dos muitos tesouros, preciosidades que ela guarda no seu interior, e que jamais deram ou receberam afectos ou carinhos de terceiros, mas a quem a ternura de um beijo fez maravilhar e estremecer.

A manhã avançava, pombas espreguiçavam-se nas beiradas das casas antigas e a cidade resplandecia cada vez mais, surpreendendo tudo e todos. O sol, que prometia uma luz nova, ia espalhando pinceladas de encanto em cada esquina de rua e em cada rosto dos orgulhosos e simpáticos tripeiros.

A magia continua, não tem fim. Nunca acabará nos corações daqueles que inovam o seu próprio destino e nunca deixam morrer os sonhos. Todos nos redimiremos do pecado da indiferença, se olharmos e formos olhados com os olhos da fraternidade.

Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do DouroDouro Inteiro;  Douro LindoA Ninfa do DouroPalavras –  Conversas com um Rio; Fado Falado –  Crónicas do Facebook;  Amanhecer; Barcos de PapelCasa de Bonecas e Crónicas de outro Mundo.

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