Às vezes levo a cidade comigo a ver o mar. Durante a caminhada, afago-lhe os cabelos, as suaves linhas do rosto e deposito-lhe nos lábios, um fortuito beijo feito de ternura. Depois, de mãos dadas, cercados pelo voo de centenas de gaivotas, percorremos a margem direita do Douro até ao local onde as águas doces do rio e as salgadas do Oceano Atlântico, se entrelaçam e formam um só corpo líquido que seguirá mar dentro, com incógnito destino.
Sinto que a cidade é feliz nesses momentos de revelação e singularidades, que só quem caminha livre pelas margens de um curso de água, consegue observar na mágica tranquilidade das alvoradas ou na doçura dos fantásticos anoiteceres.
Porque nem sempre valorizamos todo o nosso físico, prendendo-nos apenas na contemplação diária das partes do rosto refletido num qualquer espelho, aceitamos a imagem devolvida e dispensamos-lhe todas as intervenções cosméticas, de forma a salientar os elementos que mais nos valorizam, dedicando-lhes pequenos retoques artificiais, muitas vezes em detrimento dos pormenores que nos definem a personalidade.
Quando carinhosamente alguém nos leva pela mão numa longa caminhada e nos mostra as faces ocultas do nosso corpo de um ângulo antes inimaginável, redescobrimo-nos e abrimo-nos para tudo o que nos rodeia, já sem experimentar nenhuma forma de preconceito.
Também assim a cidade se liberta da escuridão em que vive, desvenda partes da sua fisionomia nunca antes reveladas, transforma-se numa criança feliz, a dar os primeiros e tímidos passos neste mundo.
Como todos os outros, sofro os estigmas da condição humana, cicatrizes invisíveis que vão causando dor e que transporto dentro de mim para sempre.
Imagino-me uma minúscula partícula de poeira cósmica, receosa de se juntar ao imenso universo de onde se desprendeu um dia, para voltar a ser estrela cintilante, talvez um ponto de claridade avistado da Terra, ou apenas um átomo com memória nuclear a flutuar na eternidade e nada mais.
Tal como uma gota de chuva que caiu no rosto de um pássaro no decorrer de uma tempestade e que estremece assustada com receio do imenso oceano para onde voltará um dia, assim me encontro hoje aqui à beira da água, a temer o futuro que ignoro e que nem sequer sei se vou chegar a viver.
Todavia, nesta hora em que a brisa de Outono me sacode os cabelos brancos, procurei o conforto do rio, a perpétua solidão da água e o silêncio milenar das margens. Porque eu sei que os rios são lágrimas que voam em forma de vapor para fertilizarem solos agrestes ou tão somente humedecer os lábios de alguém à espera de um beijo.
Essa natural troca de fluídos entre os cursos de água e as florestas, assemelha-se à de dois corpos humanos a viver o entusiasmo de um acto de prazer mútuo, que perdura até se inundarem intimamente no instante mais intenso da excitação fisiológica e permite aos protagonistas da relação sexual, experimentar um voo sem limites, tal como o dos rios que, em orgasmos nocturnos, polinizam as margens com as humidades necessárias à perpetuação da vida, no decorrer do mais sublime processo de fecundação que apenas a natureza conhece em toda a sua profundidade.
Nessa milenar simbiose na qual também fui gerado, tudo o que foi meu num tempo já vivido, se desprendeu de mim e, atemorizado como a pequenina pinga de chuva que receia o mar, sinto os olhos da cidade a afastarem-se dos meus.
Não devemos iludir-nos na caminhada de regresso ao nosso lar antigo. Neste mundo, fomos a preocupação plena de quem nos gerou e provavelmente de mais ninguém, mas crente na condição humana como sempre fui, cheguei a pensar que os olhos da urbe nunca me abandonariam e que guardariam no seu coração terno, a luz dos meus para sempre.
Nesta tarde de Outono, em que a claridade é mais suave e a Natureza se prepara para repousar, e já muito longe do alcance dos lindos olhos da cidade amada, entrego o meu espírito aos deuses do rio e dos ventos, e serei muito em breve uma memória viva a planar na fascinante formosura do espaço celeste.
Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do Douro; Douro Inteiro; Douro Lindo; A Ninfa do Douro; Palavras – Conversas com um Rio; Fado Falado – Crónicas do Facebook; Amanhecer; Barcos de Papel; Casa de Bonecas e Crónicas de outro Mundo.