A CIDADE nunca dorme. Tem ruído próprio, um rumor surdo a pairar sobre as casas, sobre as ruas e sobre todo o espaço envolvente, um som que se agarra às paredes dos rostos dos que passeiam com ou sem um rumo certo.

Os ecos da noite moldam as feições dos prédios, estátuas erigidas pela modernidade, entorpece as árvores que, perfiladas ao longo da Avenida da Boavista, se estendem quase até ao mar, colossal massa líquida que se avista ao longe a sentir as mutações das cores do seu próprio corpo, na agonizante despedida do sol, ao final de mais um dia de intensa luz.

Duas sombras passeiam de mão dada. Parecem não ter pressa em atingir o poente, onde se desenrolará uma das mais espetaculares cenas concebidas numa parceria entre céu e mar. Duas vidas que a cidade guarda no seu interior e a quem dá abrigo.

Uma mulher adulta e uma criança de tenra idade são os protagonistas deste início de noite de verão. Não se sabe os nomes, nem quem são esses seres que, pela direção que seguem, devem querer assistir ao maravilhoso espetáculo na trágica hora do crepúsculo. Fénix de cada dia que passou, quando a beleza é tanta que comove os mastros dos navios, a estrutura esquelética dos guindastes erguidos ao céu no Porto de Leixões, as areias das praias da Foz e as antigas pedras do Cais Velho.

Podemos sempre, num gesto de bondade, apelidá-los de Maria e de Tomás. Talvez sejam avó e neto, ou mãe e filho. Não conseguem identificar-se com precisão, porque nesta hora do final da tarde, a claridade é pouca na zona do Pinheiro Manso. Sítio onde a cidade se despede da massa urbanizada até à exaustão, e a idade que descriminava os seres já não conta nos corpos e nos rostos de todas as pessoas, que no presente exibem eternas pinceladas de juventude.

O braço direito da mulher adulta que rodeava, num meio abraço pousada sobre o ombro da criança, é manifestamente um gesto de amor, um aconchegar todo feito de ternura e proteção. E que se pode dar a uma criança senão amor, carinho e ternura?

Às vezes, a mesma mão da Maria afaga os cabelos do Tomás, que caminha entusiasmado. Cada vez mais se acentua o entardecer, a claridade dá lugar à penumbra que antecede a profunda escuridão. As árvores são apenas sombras quietas, onde se abrigam pássaros. E os prédios são silhuetas disformes, de costas voltadas para o ruborescer do oceano, que ficou mais próximo, e dá a sensação que se lhe pode tocar ao de leve com os dedos das mãos pequeninas do menino e acariciar-lhe o rosto feito de água salgada.

Decerto o mar iria adorar sentir o afago do contacto das mãos do Tomás porque, melhor que ninguém, ele sabe que é através da leveza de um toque em qualquer das partes do nosso corpo, que se fica a conhecer o que guarda o coração de alguém.

E finalmente o Oceano Atlântico abre-se à frente da manifesta curiosidade da criança. A fortaleza de São Francisco Xavier, que muitos conhecem como Castelo do Queijo, parece emergir das funduras das águas, quando o pequenino levanta os braços no auge da alegria que o invadiu nesse instante. O mar salgado, antes revolto, parece acalmar o seu bramido e recolhe-se no leito da cor de Água Marinha, a mais bela e leal de todas as pedras preciosas. E, tranquilo, deixa-se levar nos braços do agonizante clarão que o Sol deixou.

Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do DouroDouro Inteiro;  Douro LindoA Ninfa do DouroPalavras –  Conversas com um Rio; Fado Falado –  Crónicas do Facebook;  Amanhecer; Barcos de PapelCasa de Bonecas e Crónicas de outro Mundo.

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