Não tirava os olhos de mim, a criança que, pela sua fisionomia, me levava a crer ter saído do longa metragem cinematográfica “Aniki  Bóbó”, a primeira do realizador Manuel de Oliveira, onde possivelmente terá sido protagonista.

Aconteceu na Praça da Ribeira, num dia recente no calendário dos vivos. Num frente a frente, comigo, criança como ele, mas nunca figurante em filme algum, a não ser no da minha própria vida que, por sorte ou desdita, não tem alcançado grande sucesso de bilheteira até agora. Apesar disso, representaram-me nessa maravilhosa fita, os meus primos Vito e Bibi, os dois Moreira de sobrenome como a minha avó e a minha mãe. Foram figurantes nesse filme, jovens a quem devo a agilidade mental que me fez fã do medalhado e pioneiro cineasta do Porto, no cinema Português.

Hoje, não reconheço o chão que piso por ser diferente, as mudanças brutais no tráfego fluvial, tão pouco a imensidão de barcos de turismo atracados no cais ou em constante movimento no rio, carregados de turistas, vindos de todas as partes do mundo. O sobrepovoado espaço do porto comercial sem barracas de venda de produtos da terra, alinhadas em fila indiana desde o pilar mestre da Ponte Dom Luís no Barredo, até muito perto do Cais da Estiva, é actualmente uma passarela fantástica.

Não há pregões matinais que eram como música para os ouvidos da multidão atarefada e geravam a atmosfera, a mística que apenas os tripeiros imprimiam à sua cidade, mas que se apagou nos últimos anos. Nos dias que correm, nem o céu se mostra por entre toldos de esplanada e guarda sóis gigantes como se fossem tendas de campanha militar para abrigar refugiados, a cobrir a história da Praça do Cubo. São raras as pombas a depenicar no moderno chão de granito polido, os restos da fome, a fartura da miséria dos autóctones cidadãos residentes e dos milhares que, de passagem por ali, jogam a vida na roleta do acaso. Já ninguém vai ao Porto para ver pessoas reais, são outros os motivos que atraem os turistas

Da indefinida coloração das águas do rio Douro que nesses tempos azedos eram verdes, do tom das elegantes árvores da minha infância que perseguidas por tolos, saíram a barra sem destino algum, restou apenas uma a resistir às cheias do rio Douro e às várias tentativas de derrube por parte de quem jurou protegê-las.

Os meus olhos de cidadão já crescido e adaptado aos novos tempos, alcançam um  outro cais a meia distância da travessia ocular onde a Pronúncia do Norte, açúcar da língua pátria é, como da banda de cá, falada quase só pelos gatos e pelas pedras dos impermeabilizados solos onde a chuva cai como se fosse o jorrar de lágrimas dos indefesos desalojados à força. Cidadãos nascidos e criados naquelas já muito descaracterizadas terras de ruas estreitas, onde o vento passa ajoelhado como peregrino de Fátima atulhado em pecados.

Em criança, guardava os poucos beijos sobrantes da luta que travava com as gaivotas famintas de carinho, no bolso dos calções. Beijos do único amor que não se muda, prendas com  que a minha mãe agasalhava a alegria de me ver feliz, junto ao rio Douro no cais das Carvoeiras, na Ribeira da cidade do Porto. Tudo sob o olhar enternecido do Duque que nunca foi fidalgo, nem monarca, nem cortador de árvores, mas nobre de carácter, que com a ajuda preciosa do seu pequeno Caíco, resgatou do rio centenas de vidas humanas da morte por afogamento .

O sol a pôr-se para além dos guindastes do Porto de Leixões sobre a longa praia de Leça, logo ali em baixo, era um rubor fantástico a tingir o Oceano Atlântico de vermelho, amarelo e laranja, até se perder de vista moribundo, para lá do infinito mar da Afurada.

As pontes por onde caminham ilusões todos os dias, e que cruzam a panorâmica mais bela deste mundo, apareciam como contraste rendilhado a negro na perfeição policromática da tela. Nos prédios das duas cidades, a todas as horas, os pica miolos difundem anestésicos que vão destruindo o que resta do conteúdo de massa encefálica de um povo outrora revolucionário, que fazia equilibrado uso dela e apenas se vergava a poderes sobrenaturais.

Na noite que chegava de Nordeste, mansa como um cachorro sem dono a procurar abrigo e comida, o cheiro biologicamente pesado era um composto de bactérias, vírus, ruídos, álcool e indiferença.

O céu estremecia, as aves marinhas gritavam, em vez de dormir. Alguns sem abrigo enroscavam-se nos cantos e esquinas precariamente protegidos por páginas de jornais que ninguém leu.

E ele não tirava os olhos de mim.

Decerto eu não era mais do que uma alucinação, parecia-lhe um fantasma de alguém com quem brincou nesta Praça, numa outra distante vida onde o firmamento tinha milhões de estrelas cintilantes, as gaivotas e os patos marinhos dormiam nas beiradas das casas com gente lá dentro a imitar pessoas verdadeiras com obrigações, direitos e tudo o mais que a democracia agora exige.

Observava o fascinante cenário investido na moderna configuração de cidadão domesticado que adotei e que, num rasgo de heroísmo, mostro ao mundo.

O menino que veio das serras bombardear as cidades com a pura ternura da inocência comum a todas as crianças, o mesmo a quem tiraram o orgulho e o som do  sotaque característico da língua que ele julgava ser, apenas ela, a sua Pátria.

Pouco resta do pensamento honesto nas urbes. Reina o oblíquo turbilhão de ideias sem aplicação justa no terreno. Cada classe, senhora de recentes adquiridos egoísmos, trata dos seus particulares interesses e esquece os de todos, como se fossem viver para sempre.

Entretanto, as duas cidades tentaram viver sem mim, modernizaram-se. Deixaram-me só ainda em criança, sem pão nas mãos para partilhar com as pombas e as gaivotas, rodeado de visitantes temporários, sem horizonte aberto, sem estrelas no céu, quase sem esperança.

Todavia, o espaço resplandece subjugado às luzes de potentes leds, mas já não me pertence a mim nem a ninguém.

Era por tudo isso que aquele menino de calções e descalço, banhado em lágrimas, não tirava os olhos de mim, nem nunca os poderia tirar, porque nós os dois somos um só.

Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do DouroDouro Inteiro;  Douro LindoA Ninfa do DouroPalavras –  Conversas com um Rio; Fado Falado –  Crónicas do Facebook;  Amanhecer; Barcos de PapelCasa de Bonecas e Crónicas de outro Mundo.

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