É um miradouro situado na freguesia de São João da Pesqueira, em plena região do Alto Douro, que tem como principal referência, no acentuado vale, o rio Douro que corre ao fundo de enormes e sucessivas arribas feitas por escarpas de uma notável agrestia contrastando com vinhedos, pomares e oliveiras.

Nas funduras do precipício, formado por cordilheiras e por enclaves sucessivos que separam dois distritos e pela persistente massa montanhosa, avista-se a barragem da Valeira por jusante, empreendimento energético de grande relevância na produção de energia hidráulica, porque em si contém uma eclusa que permite a navegação para montante e jusante da gigantesca massa de água de duas extensas albufeiras. O panorama estende-se largo. A velha estação da Ferradosa parece um sonho inacabado. Um beijo saboroso interrompido, boca trocada por outra boca, uma traição da modernidade que nunca cumpriu a intenção de prolongar a suspensa linha ferroviária no Pocinho, até à vizinha Espanha.

No cume da montanha mais visível da cordilheira e na margem esquerda do rio, existe um santuário constituído por um conjunto de dez capelas erguidas ao longo do sinuoso e irregular percurso pedestre em redor do monte.

É neste cenário que a religiosidade da cristandade, presente nessas dez ermidas espalhadas pela serra e que representam os Passos da Paixão de Cristo, manifesta o seu poder. Sinais de outras religiões da época pré-romana, todas ditas de salvação, têm o que de mais sagrado impulsionava e continua a impulsionar as peregrinações anuais, com maior incidência na época de verão, de emigrantes e turistas, sobretudo raparigas apaixonadas que amarram uns aos outros, ramos de giestas, na supersticiosa ilusão de conseguirem casar.

Seja lá o que for que, para além do assombro da paisagem, atrai tanta gente a visitar esse miradouro, é notório que tem forte ligação com crenças enraizadas há séculos nos povos, que tanto podem ser representadas por uma pessoa, uma capelinha, uma pedra, uma árvore ou até um conjunto de giestas e torgas, arbustos abundantes nessa região, e transmitem em muitos de nós, que ainda conservamos vestígios do homem primitivo, a ideia de que se trata de elementos impregnados de poderes sobrenaturais benéficos ou até malévolas feitiçarias, bruxedos e outras formas isotéricas que exercem um poder psicológico sobre os crentes humanos, apenas pela sua presença nesse solitário ermo.

O sagrado convive muito de perto com as artes de magia imaginadas por muitos. Fragilidades de espírito todavia escondidas sobre as águas tranquilas do rio Douro, que também guarda nas sua funduras, importantes relíquias do passado, e pelas neblinas que se formam nos vários enclaves da região que muitas vezes a fazem desaparecer totalmente dos curiosos olhos do mundo.

Mas se tudo o que a natureza toca se transforma em sagrado, assim o são todos os homem e mulheres, todos os seres vivos, árvores e pássaros, animais de todas as espécies, montanhas e planícies, oceanos e rios; a Terra inteira.

Tudo e todos obedecemos à ordem da criação, da palavra escrita que narra os líricos salmos da salvação e das profecias, que imputam ao Ser Supremo toda a responsabilidade de algumas imperfeições da Sua magnífica Obra. Há, pois, necessidade de que, nesta narrativa, se recite o sagrado prefácio de todos os salmos:

– E Deus disse…

A voz que nos fala através dos hieróglifos, escrita usada há séculos no antigo Egipto e nas gravuras rupestres do rio Côa, a poucos passos dali e já com mais de um milhar de anos de existência, pode confirmar toda a transformação interior que acontece e incide principalmente em quem percorre o rio na busca de liberdade, de paz de espírito ou de um banho de luz sobrenatural por que todo o ser humano crente espera, para remissão do que consideram ser os seus pecados mortais.

E a paz existe na verdade por ali, principalmente no espaço mais perto do rio, onde parece que a nossa alma existe fora do corpo, concentrada apenas no absoluto silêncio, na rudeza das pedras onde se agarram velhos musgos, torgas, giestas e outros arbustos abençoados por gerações de povos ancestrais, combinados com a serenidade das águas geradoras de autênticos milagres.

Não se sabe de onde provém tanto magnetismo. Poderá ter sido enviado de distâncias infinitas, pelas mãos de algum iluminado “homem de Deus”, que passou muitas horas a contemplar essa obra-prima, como se tivesse sido desterrado para o paraíso muito antes da morte física acontecer. Pode também ter sido um ermita, um poeta, uma mulher de virtudes ou mesmo um vulgar pastor de gado caprino, que dia a dia percorre os carreiros desses montes na busca de alimentação para o seu rebanho.

Tudo em redor obedece a uma espécie de ordem mística e natural. Há quem diga que aquele lugar foi e continua a ser um dos habitáculos de Deus, na figura de todos os rostos e nomes que Ele adaptou para se fazer igual a todos os homens e compreendido por gentes de todas as raças, credos e línguas. Um berçário que a esperança escolheu para nascer todos os dias.

Neste mês de Maio, as giestas, que têm o poder de neutralizar feitiços, florescem pelas margens do rio, debruçam-se sobre as águas, misturando o seu inebriante perfume com outros delicados aromas que pairam na atmosfera e transformam a terra num jardim encantador.

É esta magia que emana da pureza do ar, um dos elementos que certificam que muito pouco pode a tolice de uma parte substancial do ser humano, para impedir o curso natural das coisas, e de tudo aquilo que é essencial para o regular e perfeito funcionamento do próprio Universo.

Não é fácil salvar o Mundo, mas ao menos, podemos tentar salvar o amor entre todos os povos.

Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do DouroDouro Inteiro;  Douro LindoA Ninfa do DouroPalavras –  Conversas com um Rio; Fado Falado –  Crónicas do Facebook;  Amanhecer; Barcos de PapelCasa de Bonecas e Crónicas de outro Mundo.

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