1952
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Solidão

Solidão

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1952

ÀS vezes é por terra que percorro a distância entre a foz do rio Douro e Miranda onde como um rei ele entra em Portugal e começa a fazer fronteira com Espanha até Barca D´Alva. A partir dali, embrenha-se todo no nosso território e segue a serpentear tortuoso por entre serras e raras planícies até alcançar o mar onde desagua coroado pelas cidades do Porto e de V. N. de Gaia. Vou por estradas que subindo e descendo montanhas, apontam diversificadas e desconhecidas direcções mas sempre com o rio à vista.

Nos planaltos do extremo nordeste, assisto à desertificação e ao abandono de campos, de quintas e aldeias inteiras deixadas entregues à sua sorte pelo resto de um país que perdeu já muito da sua identidade. Este comportamento tem uma razão que se prende com a vida desumana que tem feito parte de cada uma das gerações ligadas às actividades agrícolas consideradas sector primário. Poucas ou nenhumas das famílias que subsistiam da agricultura, querem para os seus filhos e netos, esse tempo de sacrifício e o desprezo com que a maior parte da sociedade olhava para os trabalhadores agrícolas, foi determinante na brusca mudança de paradigma. Labregos e outros epítetos desagradáveis e traumatizantes de gerações inteiras atirados à cara de quem trabalhava a terra foi também motivo para apressar o êxodo.

E caminho agora como os olhos, disperso-me sobre os montes, sou ave enfeitiçada pela graciosidade do voo que a anima, escuto os sons da terra, a música que embala por ser suave e doce, encho os pulmões com as fragrâncias do ar que respiro, cheiros intensos e refrescantes a flores sem pesticidas, a matos ainda virgens, a ervas que por daninhas resistem a tudo, a vegetação silvestre de pequeno e médio porte que foi as vestes de gala de toda a área mediterrânea, a água que jorra caprichosamente dos ribeiros e dos corgos artérias do solo e a terra berçário de uma natureza inimitável.

Repentinamente estremeço, o rio farol que me guia nesta viajem, desaparece-me das vistas, esconde-se como criancinha a brincar às escondidas comigo. Traquina como o são todos os garotos, vai por de trás de uma elevação para inesperadamente me surgir mais à frente a sorrir surpreendente e majestoso. Cada uma destas sucessivas aparições desvenda um panorama novo. E como o descreveu e escreveu magistralmente o grande Miguel Torga, não é um quadro que os olhos contemplam, é uma desmesura de natureza arrogante. Poios que são esforços de indivíduos formidáveis a subir as encostas, vultos, colorações e toadas que nenhum artífice, escultor, pintor ou até músico nunca conseguiriam representar na perfeição das suas artes. São horizontes ampliados para lá dos patamares admissíveis da visão, um cenário que arrebata, uma vista fantástica a nascer entre a terra e o céu. Nada me consola mais que essa peregrinação pelas terras que dão vinho generoso e onde corre um rio sempre lá ao fundo dos sucessivos vales que adoptou como leito. Tudo é dinâmico, nada se repete etapa após etapa e os contrastes naturais são tão apelativos que algumas vezes nos assustam e outras vezes nos comovem até às lágrimas.

Um dia quando viajava pelo Douro, afastei-me um pouco do trilho conhecido e, seguindo por uma estrada secundária, fui parar a um ermo onde em tempos passados existiu uma aldeia.

Havia velhas casas desmoronadas, árvores secas, um laranjeira sozinha a insistir em produzir deliciosas laranjas, roseiras mirradas por que deixaram de ter água, pedras caídas por todo o amplo espaço como se uma bomba atómica tivesse deflagrado ali e deixasse só restos fragmentados espalhados no chão aparentemente queimado por sucessivos incêndios. A terra em repouso à espera dos arados que a desbravassem e produzisse alimentos, estendia-se sonolenta perante os meus olhos e a ver ao longe a fome a entrar em muitas casas.

No meio desse cenário desolador, havia um edifício cujo aspecto me pareceu ter resistido à fúria de todas as intempéries, ao desleixo que a parte mais imbecil e menos culta da nação, insensatamente aplaude.

Sentada na pedra de um antigo fontanário que teimava em gotejar água dia e noite estava sentada uma velha mulher e, ao lado dela um cão já velho deitado ao comprido no chão de cascalho, dormia tranquilamente. O suposto atento vigilante, não tinha dado pela minha presença ou então já nem lhe interessava quem quer que fosse a pessoa que viesse interromper-lhe o deleite do sono. A prolongada solidão gera o cansaço nos seres e transforma homens e animais em pedras de indiferença.

As ervas daninhas cresceram ao ritmo do abandono o único pulsar de seiva neste lugar perdido algures no Alto Douro. O vigor que dantes alimentava a verdura que proporcionava alimento, já há muito que só anima os arbustos e as e espécies invasoras que vão tomando conta de tudo e fazendo voltar este pedaço de mundo aos tempos primitivos. São silvas que crescem espinhosas e amortalham lugares onde outrora a vida existiu. São velhas árvores de fruto que sem poda, cresceram desordenadamente e parecem esqueletos a bramir com o céu. Ninguém se avista no horizonte largo que as minhas vistas alcançam. Quase todos os homens e mulheres que aqui nasceram, envelheceram com a terra, morreram ou partiram para diversos lados e muitos até para outros países em busca de melhor sorte.

A velha parecia-me uma fotografia antiga perfeitamente enquadrada na tristeza da paisagem agora descolorida e era como uma estátua petrificada onde se agarram musgos por ventura eternos. A sua cabeça coberta por grinaldas de cabelos brancos, tombava suavemente sobre o peito como quem subitamente adormeceu para sempre. Talvez sentisse o desanimo, a dor silenciosa de quem ficou abandonado quando todos partiram ou reflectisse sobre a devastadora ingratidão de um mundo que a deixou sozinha neste lugar deserto de pessoas que todavia se precipita extremamente belo sobre um rio. Pousava a mão direita sobre o joelho e a esquerda apoiava-se nessa pedra de granito desnivelada pelo tempo e falta de cuidados a esperar tranquila pelo fim dos seus dias.

Uns olhos pequeninos e da cor dos horizontes mais azuis que o Douro tem, afundavam-se em dois buracos circundados por peles encorrilhadas, vieram sem pressa até mim e, a expressão daquele rosto antigo, manteve-se inalterada como se eu próprio fosse apenas mais um vento indiferente que vinha do sul agitar-lhe os cabelos ralos e brancos. Ventos perpétuos que por aqui passam todos os dias e todas as noites a sacudirem as pedras e transportam dentro da sua permanente erosão, poeiras que vão apagando os vestígios humanos.

Senti desejo de comunicar com aquela figura que me fazia lembrar a escultura do mestre Soares dos Reis, O Desterrado, magnifica simbologia do espírito de decadência da nação, que imperava em finais do século XIX. Desterrada também ela estava num lugarejo esquecido por via de acontecimentos semelhantes aos de hoje ocorridos há muito mais de cem anos.

A história repete-se duas vezes, escreveu um dia Marx: a primeira como tragédia, a segunda como farsa. Curioso, qualquer uma delas refere-se a uma peça teatral, será então de supor que a história ao repetir-se não passa de mera representação previamente encenada onde as pessoas se movimentam num palco colectivo sem esperança e embarca no mesmo conflito de identidade característica dos povos em vias de desenvolvimento.

Segundo Aristóteles, a tragédia deve cumprir três condições: possuir personagens de elevada condição e ser contada em linguagem distinta e digna e ter um final triste, com a destruição ou loucura de um ou vários personagens sacrificados pelo seu orgulho ao tentarem rebelar-se contra as forças do destino. De finais tristes e desmesuradas loucuras está repleta a nossa história contemporânea vergada aos muitos interesses individuais que geram disparidades e acentuam distâncias abismais entre ricos e pobres.

Por sua vez a farsa é uma modalidade burlesca também de peça teatral caracterizada por personagens e situações caricatas, é um texto de carácter cómico que o autor faz com o objectivo de satirizar algum comportamento que ele considera nocivo para a sociedade, fazendo com que, quem assistisse ao teatro, visse como é ridículo ter aquele procedimento passando a repudia-lo. Isso fez com que a sociedade em certos momentos, rejeitasse determinadas conduta, prejudiciais a todo o povo.

Burlescos e cómicos têm sido os últimos tempos que vivemos em que parte da sociedade enaltece e premeia a falta de cultura, de ética, a ausência de princípios, a desqualificação e, em prejuízo de outras mais sensatas, se elogia a esperteza, a ganância, o exibicionismo folclórico e quem mediático se tornou pelo simples motivo de agradar às massas inconscientes que cultivam celebridades duvidosas.

– Bom dia minha senhora!

– Muito bom dia, respondeu-me ela sem qualquer surpresa nas mãos que agora lhe dormiam no regaço, quietas, enrugadas e queimadas por um estranho lume.

– A senhora mora aqui, perguntei.

– Há oitenta e nove anos e meio meu senhor, nunca daqui saí até hoje!

– Tem mais alguém a viver consigo?

– Não meu senhor, já há quinze anos que moro aqui sozinha. Foram-se todos embora!

– E não tem família?

– Não meu senhor, morreram-me todos, fiquei só eu!

Enquanto falava reparei que os seus olhos pareciam duas telas onde passavam velozes imagens de cenas que só ela viveu. Olhos de velhos onde se acumulam saberes e visões aparentemente esquecidas, vistas a quem a bruma dos anos embaciou e roubou o brilho mas nem por isso deixaram de ter a sua luz magnífica.

– Deve ser muito difícil viver neste sítio sem ter companhia, murmurei.

– Não meu senhor, tenho aqui a minha vida toda, criei-me nestes caminhos, corri os montes antes florestados na apanha das lenhas para sustentar o lume da lareira onde se cozinhava todos os dias, aqui me fiz mulher e me casei, foi aqui que eu nasci e fui muito feliz durante muitos e bons anos!

Respirou fundo:

– Isto dantes era uma terra cheia de gente e de vida, havia festas e romarias, as vinhas estendiam-se quase até tocar na água do rio, os campos davam comida para as pessoas e para os gados. Depois começaram a ir uns atrás dos outros para o estrangeiro, isto parou de recompensar o esforço que se fazia para tratar a terra, o vinho deixou de valer dinheiro, ninguém o queria nem de graça, compravam outro que vinha de fora mais barato mas feito a martelo, desapareceu tudo até só ficarem os velhos, os cães e os gatos.

Acabou tudo meu senhor até as árvores que havia aqui em volta foram queimadas pelo lume dos fogos que já ninguém apaga.

Nisto o cão levantou-se e começou a ladrar ameaçadoramente.

– Cala-te Mondego, ordenou ela com voz firme. Só te chegou o cheiro ao nariz agora? É um senhor do Porto que aqui está, veio visitar-nos disse ela enquanto que com uma das mãos lhe afagava ternamente a cabeça. O animal calou-se obediente e voltou a esticar-se tranquilo no chão.

– Sabe meu senhor, ele ficou velho como eu fiquei, está surdo e cego, só atina pelo faro coitadinho!

– Pobre e dedicado animal, pensei!

– Deve ser muito triste viver aqui sem ver nada para lá dos montes, retorqui.

– Olhe lá para baixo meu senhor, não vê o rio Douro? Está sozinho como eu e não se queixa. Fazemos companhia um ao outro, vamos vivendo olhando-nos todos os dias!

Apeteceu-me beijar aquele rosto sábio e sereno, contendo todavia esse impulso repentino, perguntei-lhe:

– Posso dar-lhe um beijinho de despedida?

– Beijos não meu senhor, desculpe mas eu só fui beijada por um homem em toda a minha vida. Era o meu António que descansa além no cemitério. Todos os meus beijos ainda são só os dele!

Ah ínclito povo do meu país quase desfeito, alguns roubam-te tudo o que te fez culto e empreendedor e impassível, continuas a envelhecer sentado numa pedra. Não te posso beijar o rosto enrugado mas beijo-te as mãos e o chão sagrado que tu pisas.

SOBRE O AUTOR: Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do Douro; Douro Inteiro;  Douro Lindo; A Ninfa do Douro; Palavras –  Conversas com um Rio; Fado Falado –  Crónicas do Facebook e Amanhecer (Poesia). Colabora com o Correio do Porto desde junho de 2016.

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1 COMENTÁRIO

  1. Enorme cumplicidade que o escritor demonstra pelo passado, sentimentos e emoções bem presentes …

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