É UMA cadela de raça Yorkshire Terrier a quem falta um dos olhos, mas nem por isso deixa de observar atentamente as belezas do rio e da paisagem envolvente. Não pode expressar por palavras o deslumbre que a encanta nas límpidas manhãs de Outono em que a natureza parece regressar lentamente ao princípio de todas as coisas, mas nota-se a alegria que trás no seu coração pequenino.

Tudo serena nesta época em que a natureza nos troca os tempos e nos muda os ventos com a secular precisão de quem usa de sensatez para perpetuar os ciclos das estações. Todos sentimos a melancolia destes dias mansos, alguns cedem às sensações de cansaço e até de falta da energia vital para uma vida sem depressões. Ainda com a luz diurna, a calmaria cai sobre as casas, sobre as árvores e sobre o rio. Até o vento quase sempre inquieto, se recolhe algures em paragens desconhecidas e permite a suavidade das brisas que afagam os cabelos das árvores e contam histórias antigas às crianças.

A Sury conhece as rotinas do meio em que vive, brinca com todos, mas exterioriza especial predileção pelos mais pequenos. Nas esplanadas de cafés ou zonas por onde muitas vezes se passeia, pede licença para se sentar numa cadeira disponível e por ali fica a ouvir as conversas das pessoas, dos barcos e dos pássaros ao mesmo tempo que, através do apurado olfato, avalia um a um todos os presentes memorizando para sempre os rostos de deles na sua lista de afectos.

Os cães são capazes de reconhecer entre os humanos aqueles em quem podem depositar mais confiança. Aos mais crescidos e desconhecidos, manifesta reservas, às crianças, criaturas que partilham com ele e outros animais o mesmo e fascinante mundo infantil, subjugam-se e tolera-lhes todas as festas e brincadeiras, inclusive as mais perigosas.

Vive num outeiro de onde se vê o rio Douro a descrever sinuosas curvas a caminho do estuário onde se deixa misturar com o mar. Passeia-se descontraidamente por todos os lugares, mas sempre com a máxima atenção ao seu tutor que lhe vai dispensando a todo o momento, mimos e caricias. Quando um barco passa carregado de turistas ou um bando de gaivotas sobrevoa em algazarra o espaço da água, agita-se e parece também fazer parte do espetacular cenário que se desenrola ao alcance de um olhar. O sítio é de uma boniteza que cativa. Não há no percurso do rio desde a nascente até desaguar nas proximidades da cidade do Porto, um local onde as nossas vistas se deliciem com tanta comoção na observação da paisagem, como em Rio Mau, antiga aldeia de barcos valboeiros e de pescadores de sável e de lampreia, artes já extintas pela enchente das águas da barragem de Crestuma\Lever que impede a subida dessas espécies migratórias que constituíam importantíssima fonte de rendimento das populações ribeirinhas.

A Sury não conhece a história deste povo, é demasiado jovem para perceber a grandiosidade dessa gente a quem tiraram o pão e os afastaram do seu rio em troca de nada. Rio que era berçário de muitos que dormitavam embrulhados em pedaços de pano de velhas velas, mas conhece pessoas dessa época. Deixa-se acariciar com os afagos feitos por mãos que agarravam com força os remos e as redes, mãos de mulheres e de homens que executavam as cansativas tarefas comuns sem distinção de sexo numa parceria rara que só existiu neste rio.

Ora remavam e lançavam as armadilhas, ora as recolhiam de pés nus fincados na areia da margem num esforço tão violento que se pode considerar heróico, ora forçavam paragens nas artes para amamentar os filhos. Mulheres que a par das fainas do rio, acumulavam as tarefas domésticas, tratavam das crias, cozinhavam, ponteavam as roupas, as redes, as velas dos barcos e limpavam as casas.

Às vezes um sino toca a defunto numa ou noutra margem do rio e mais uma alma de homem ou de mulher membros dessa gente antiga, sobe ao céu prometido. Assim será até desaparecer da Terra o último ou a última personagem ilustre desse tempo.

A Sury não conhece a história deste povo é verdade, veio ao mundo para fazer feliz quem escolheu por companhia e todos aqueles que se cruzarem com ela, mas estremece quando ouve as badaladas do sino.

Anoitece em Rio Mau, o céu parece uma pintura de Edvard Munch, um quadro expressionista, feito de todas cores da luz do sol na hora do crepúsculo em que predomina o vermelho do desespero dos mais frágeis, um grito de alerta a muitos de nós que abdicamos da solidariedade para com a humanidade e para com a natureza.

O rio Douro deixa-se pincelar por essa maravilhosa paleta de cores. Nada se mexe como no famoso quadro do pintor Norueguês e, de águas tingidas de vermelho, deflecte todo o encanto que a natureza tem.

Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do DouroDouro Inteiro;  Douro LindoA Ninfa do DouroPalavras –  Conversas com um Rio; Fado Falado –  Crónicas do Facebook;  Amanhecer; Barcos de PapelCasa de Bonecas e Crónicas de outro Mundo.

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