1831
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Um amor assim

Um amor assim

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1831

OUTUBRO de um ano que já passou confundido no calendário com a  data do meu aniversário. Já nem me lembro de quantos anos fazia nesse dia, provavelmente muitos, eu sou uma oferta dos tempos, uma criatura que nunca há-de saber o dia e a hora exacta em que veio a este mundo. Há um perfume a cegar-me os momentos, uma fragrância que os rios produzem com o propósito de enganar e de iludir todos aqueles que julgam poder desvendar os mistérios que as águas encerram. Poderes ocultos só apreciados nos instantes em que o universo plana em sintonia com a terra, e das forças do firmamento celeste se soltam energias que se abatem sobre as correntes liquidas onde os deuses caminham eternamente. Sou pois o produto de um amor antigo, genuíno e secreto como o eram quase todos  os amores dessa época. Sentimentos fermentados nas profundezas de todos os infernos e simultaneamente abençoados por todas as divindades.

Lembro-me de coisas, de algumas que de outras já me esqueci por que nenhum ser humano consegue reter na mente tantos episódios decorridos ao longo de duas gerações onde se acentuavam as diferenças, os métodos de vida e as formas de pensar.

– Não dormes?

A noite pergunta-me sempre por que estou ali em frente da janela a pesar figos, a tentar perpetuar coisas perdidas, a rever os cadernos sarrabiscados dos meus primeiros tempos de escola. Estranha grafia imperceptíveis gatafunhos que só me lembram a criança que já fui.

Às vezes olhava para a minha mãe sentada no sofá com o livro de orações preso nas mãos e os óculos a tombar em cima da ponta do nariz; procurava naquele rosto enrugado as respostas às minhas tantas inquietações, aos meus conflitos interiores, à minha incapacidade de perceber o universo que se abria em frente dos meus olhos sempre na expectativa de entender  tudo o que desconhecia nesse tempo. De dentro daquele corpo outrora admirável, sugiram as respostas, frases soltas, silêncios prolongados,  histórias de vidas,  pequenas dicas que seria preciso decifrar e compreender.

Nesse dia do meu aniversário em que todos parecíamos felizes e, como se pressentisse a proximidade do fim, ela disse-me:

– Filho quero ser sepultada em Rio Mau!

Já sabia, aliás sempre tive a quase certeza de que a minha mãe nunca me iria desiludir mesmo nas horas antecessoras da morte, no dia em que já com noventa e três anos completados, lúcida e em pleno uso de todas as suas faculdades, marcava a ferros de fogo os traços das suas origens, renegava as dezenas de anos de convívio numa terra que sempre lhe foi estranha apesar de se lhe ter dedicado e dado tudo o que tinha para lhe dar.

– Mãe, o pai está enterrado aqui, não acha que seria melhor ficar numa campa ao lado dele?

Olhou-me de uma forma estranha, acho que nunca vi aqueles olhos cor de mar tomarem uma tonalidade que se assemelhava à cor das águas de um rio como o douro. Pareceram-me então os meus, agrestes, violentos, suaves, ternos, verdes e penetrantes.

– Não!

A minha terra é Rio Mau, foi lá que eu nasci e vivi durante muitos anos, é lá que eu quero ficar para sempre!

Não era a minha mãe que falava agora com voz elevada, era antes um ser determinado em ser obedecido, um guerreiro que manifesta com veemência  a sua última vontade.

Apertei-lhe as mãos nas minhas e fiquei a pensar que talvez um dia seja eu a fazer as mesmas exigências aos que me sucederão na certeza de que já sinto o mesmo apelo da terra que me viu nascer, o grito que vem do passado e me esmaga o coração, as vozes de antigamente a clamar na noite de vigília, o desejo de repousar também lá em cima onde mesmo depois de ter deixado este mundo, poderemos ver o rio Douro e o rio Mau a toda a hora.

Publicado no livro Fado Falado – Crónicas do Facebook

SOBRE O AUTOR:
Manuel Araújo da Cunha  (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do Douro; Douro Inteiro;  Douro Lindo; A Ninfa do Douro; Palavras –  Conversas com um Rio; Fado Falado –  Crónicas do Facebook e Amanhecer (Poesia). Colabora com o Correio do Porto desde junho de 2016.

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