UMA chuva miudinha caía lentamente sobre a terra. De vez em quando, um raio tímido de sol, rasgava as nuvens e dava colorido à paisagem desolada. No sino da capela situada no alto de uma colina, batiam cinco horas da tarde, o rio passava sereno como um lago a espelhar o casario da margem.
O Migalha vinha dos lados da adega onde certamente afogou as horas em canecas de vinho tinto. Cambaleava o velho barqueiro, mas seguiu em frente num rumo conhecido e há muito traçado, o banco de pedra armado por baixo da velha Tília, árvore que na Primavera perfumava o ar em seu redor e embelezava aquele pequeno miradouro.
Abeire-me dele, talvez porque o vi desabrigado à chuva que caía lentamente sobre todas coisas.
– Boa tarde, disse eu!
Não respondeu, julgo até que nem deu pela minha chegada.
A morrinha que caía molhava-lhe a roupa, humedecia-lhe o corpo, mas serenamente, continuava a olhar para o rio Douro que corria e continua a correr ali perto.
Assim permaneceu por algum tempo quedo, mudo, silencioso como estátua de alguém já falecido erigida em homenagem por actos de valor.
Repentinamente saiu dos seus lábios um murmúrio de canção. Primeiro baixinho como lamento de quem chora, depois um pouco mais alto como quem apesar de triste ainda canta
– Tu não sabes que dentro da minha alma, conservo aquele carinho que tive para ti. Tu não sabes, que nunca te esqueci, se lembrares o passado, te lembrarás de mim.
Reparei que havia lágrimas no rosto do barqueiro, o fumo do cigarro era denso, tapava-lhe o rosto quando evoluía na humidade do ar.
– Boa tarde, repeti!
Nem um gesto, nem uma palavra, absorto, continuava a olhar para o rio e a entoar aquela estranha canção.
– Tu não sabes, que dentro da minha alma conservo aquele carinho que tive para ti.
Olhei-o como se fora a primeira vez que o tivesse visto nesta vida. Suspendido pela circunstância romântica da letra, pensei; então o Migalhas tem alma? Uma alma que parece ter sentido um dia longínquo um certo carinho e ternura por alguém. Mas por quem!? Nunca lhe conheci namorada ou esposa, a minha lembrança deste homem, é remota quase se perde no tempo, mas nela não consta qualquer relação de amor, fosse por quem fosse.
Continuou a cantar agora ainda mais baixinho, quase não se fazia ouvir. O som da sua voz era apenas um leve murmúrio suave como o que faz a água que corre nos ribeiros.
– Desde o dia em que partistes sinto angústia no meu peito, que será que terás feito, do meu pobre coração.
Tirou do bolso do casaco um lenço tabaqueiro e secou as lágrimas que lhe afloram aos olhos e que livres se misturavam com as gotas de chuva. De repente deu pela minha presença, olhou-me longamente com aqueles olhos de menino medroso que sempre lhe conheci.
– Boa tarde, repeti!
– Boa tarde, respondeu-me ensaiando uma breve explicação para o que lhe pareceu um acto menos digno o facto de não ter dado mais cedo por mim:
– Desculpe! Sabe, estava aqui a olhar o rio e de repente vieram-me à lembrança coisa da vida já de há muito tempo, de há muitos anos atrás.
– Pois é ti Migalhas, às vezes a gente lembra-se do passado.
– Pois, você era uma criancinha nessa altura! Uma pausa prolongada, um chupão no cigarro forte e o fumo a inundar-lhe outra vez o rosto.
– Sabe eu também já fui jovem, tive as minhas coisas, nem lhe conto. Algumas mulheres povoaram os meus sonhos da mocidade. Foi bonito de viver esse tempo, mas tudo passa, morre para o mundo, mas não morre para a gente. Dentro do peito fica sempre uma lembrança, uma recordação. Lembranças boas, recordações más, é conforme!
– Esta era uma recordação boa ti Migalhas!?
– Era, era uma recordação boa, lembro-me como se fosse hoje; sentada neste mesmo banco ao meu lado. O seu perfume que nunca esqueci, misturava-se com o perfume da tília em flor, o seu sorriso meigo, o andar gentil de menina, embriagavam o ar por onde passava. Como amei essa mulher meu Deus, exclamou com um suspiro.
– Se a amou assim tanto porque nunca se casou, ou aconteceu alguma fatalidade!?
– Coisas da vida filho, coisas da vida!
Secou novamente as lágrimas e as gotas e chuva com o lenço que tinha estampadas riscas vermelhas e brancas, levantou-se lentamente, olhou para o céu e para mim com um olhar estranho que me pareceu ir durar eternamente.
– Até amanhã, disse já a cambalear em direcção a casa…
Fiquei-me a olhá-lo até ao fundo da rua, a vê-lo desaparecer na esquina da casa da Sobreira como se fosse uma ave azul ou da cor do céu.
Falou, mas não me contou tudo, haveria muito mais para dizer, pressenti-o nos seus olhos e nos seus gestos. Certamente nunca o fará, pensei na altura. A história desse amor antigo, morrerá um dia com ele e esse segredo que carrega na alma há tanto tempo, permanecerá apenas vivo nas lembranças do rio que ele amava.
A chuva tornou-se mais densa e uma brisa forte agitou as folhas da Tília e parece-me ouvir por entre o soprar do vento, o murmurar daquela canção linda:
…. Tu não sabes que dentro da minha alma, conservo aquele carinho que tive para ti. Tu não sabes, que nunca te esqueci, se lembrares o passado te lembrarás de mim…
– Até amanhã, ti migalhas!
Mas, nunca houve amanhã. Nessa noite, o meu amigo barqueiro adoeceu gravemente vindo a falecer poucos dias mais tarde. Nunca me contou o resto da história e eu, em sua homenagem, continuei a sentar-me no banco por baixo da Tília a olhar o rio ao final das tardes.
O tempo passou, nova Primavera despontou, os pássaros cantavam enamorados, muitos perfumes se espalhavam pelo ar, as árvores despertavam para nova e florida vida, mas a Tília, nunca mais deu folhas, nem flores, nem perfume, simplesmente secou.
SOBRE O AUTOR: Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do Douro; Douro Inteiro; Douro Lindo; A Ninfa do Douro; Palavras – Conversas com um Rio; Fado Falado – Crónicas do Facebook, Amanhecer e Barcos de Papel, estes dois últimos de poesia. Colabora com o Correio do Porto desde junho de 2016.
Bom dia. Quantos ti Migalhas e ti Marias recordam com saudade o Primeiro e único Amor. Adorei. História linda, mas, triste.