SURGE-NOS súbito no meio da encosta sobranceiro ao rio. É uma pérola que se soltou do colar da Vila de Mesão Frio e que em Santa Cristina se ficou perplexa na contemplação da soberba paisagem, cercada por densa floresta, laranjais e vinhedos.
Aquele amplo mirante é talvez um dos locais mais encantadores que a região do Douro tem.
O solar é uma edificação setecentista atribuída a Nicolau Nasoni, tem pórtico em granito encimado por quatro ameaçadores grifos alados que contrastam com a tranquila suavidade do lugar. Recentemente transformado em Pousada, a importante unidade hoteleira da região é embelezada por românticos jardins que narram em cada um dos seus recantos, agora silenciosos, histórias de amores e paixões avassaladoras, sentidas e vividas por damas e cavalheiros ilustres de outros tempos, que para as Caldas do Moledo, aqui bem perto, vinham no princípio do Outono, a banhos, e repousar do desgaste das vidas agitadas que possuíam no litoral.
Apesar do tempo que já passou desde a última representação, ainda hoje me parece escorrer das robustas pedras de granito de que é feito o magnífico fontenário, a água pura de lágrimas inocentes, algumas vezes furtivas, derramadas em vão por seres apaixonados a quem o destino amoroso quase sempre fez sofrer.
Das folhagens das centenárias árvores que existem na retaguarda do prédio, quando tangidas pelo vento que irrompe vindo dos lados de Barqueiros, em noites de calor como esta, parecem desprender-se as melodias das composições musicais que animavam as danças palacianas nos nobres salões decorados e trabalhados com talha de madeiras exóticas e azulejos antiquíssimos, da bela e imponente mansão.
Bailes majestosos, plenos de deslumbramento, animados com músicas executadas ao vivo por famosas orquestras vindas da cidade do Porto. As damas, senhoras da mais alta fidalguia, primorosamente produzidas pelos suaves pós de arroz de aromas únicos da simples maquilhagem, caprichando pela elegância, muitas vezes sacrificando a macia liberdade das partes mais íntimas ao violento sufoco dos espartilhos, deslumbravam o auditório. Assim modeladas, transformavam-se em desejados e apetecíveis frutos, cobiçados nas mentes dos ilustres senhores convidados para as bodas festivas que, na época, regularmente ali aconteciam.
Vestidas com regra onde se notava a finura da arte da moda desse tempo, saída das mãos dos melhores costureiros da Europa, enfeitadas com ouros e brilhantes, alguns ousadamente a desprenderem-se em cascata sobre a fenda que aparta e salienta ainda mais o relevo dos seios a ameaçarem romper os tecidos armados dos corpetes, impressionavam quem as via, coloriam o espaço da dança, disseminando no ar perfumado o apelo aos beijos, aos abraços e outras mais sensuais carícias que se iam concretizando sob a condescendência de todos, em cada recanto do poético jardim do ilustre palacete, ao som de valsas lindíssimas.
Escrevo sentado sobre a laje da fonte, agora sem o jorrar da água do passado de onde contemplo a pedra de armas dos “Borges e Cabral”, brasão da família dos proprietários da quinta no século XVIII, esculpida na frontaria principal. Revivo cenas, excito-me saudavelmente obedecendo ao fantástico poder da mente que, por efeito de desconhecida magia, me transforma num distinto e eufórico cavalheiro de antigamente, em plena imaginária orgia a abraçar com suave delicadeza de mãos e braço direito, a fina cintura da mais bela e doce das damas presentes no festivo salão. Mulher que nunca vi, mas sei que existe nos sonhos de todos os homens, a segurar a sua mão, sentindo os seus seios firmes, ungindo a face rosada colada à minha com os vapores quentes da acelerada respiração que o desejo produz, evoluía enlaçado a ela em êxtase profundo.
O homem só enlouquece quando e onde quer!
A valsa, que se me afigura entre muitas, é Danúbio Azul de Johann Strauss que me permanece audível no maravilhoso cenário nocturno. A melódica orquestração espalha-se por todo o vale, parece sair-me da alma e, inebriado pelo toque das lembranças, memorizo a orquestra sinfónica de Viena de Áustria a interpretar tão magníficos acordes musicais, num dos imponentes salões da cidade exuberante.
Sou como sempre o fui, um viajante incógnito num roteiro turístico de enorme relevo no país, de colossal e indizível beleza, a quem dedico aminha admiração e muito amor.
O que me traz aqui, mais que a procura das sensações que a História por injustificado pudor nos nega, é aquele fio líquido a correr lá em baixo, que há-de levar-me até ao mar, à cidade do Porto, terra onde o amor nos pode surpreender em cada esquina de rua, em cada ondulação das águas do rio Douro, até fazer de nós escravos.
Saciado de beleza, de música e de luz, encerro a noite observando um amanhecer sobrenatural.
Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do Douro; Douro Inteiro; Douro Lindo; A Ninfa do Douro; Palavras – Conversas com um Rio; Fado Falado – Crónicas do Facebook; Amanhecer; Barcos de Papel; Casa de Bonecas e Crónicas de outro Mundo.