1916
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Vindimas

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1916

LÁ em cima, da Ladroeira, vêem-se arranjadas as vertentes que descem em cascata até à ponte romana da Bateira. Alinhas perpendicularmente, as vinhas alongam-se por toda a encosta como se fossem canteiros de jardins suspensos a receber o micro clima generoso que sustenta o vale e, o rio Paiva a correr lá ao fundo, vai temperando com exóticos vapores. É vinho verde tinto de castas Vinhão e Amaral e outras escolhidas a dedo que amadurecem nas agruras dum sol que inclemente passa por cima de Carreiros e ainda castiga a natureza e os homens.

É um produto único no mundo o que vai nascer desta colheita; verde como a paisagem em que é cultivado, verde da cor da esperança de quem o trabalha com dedicação e muito amor e verde como a juventude que encerra e vai espalhando pelo mundo fora em tragos de sabor inimitável a pedirem carne de vitela arouquesa assada ou grossas fatias de presunto acompanhadas por broa de milho e azeitonas pretas curtidas, bem como cebolas rachadas em quatro, espargidas com sal grosso abundantemente regadas com o tinto do mesmo vinho.

Gemem as videiras e os cachos de negros bagos em cujo interior germina o açucarado precioso néctar, recolhem-se apertados sob a folhagem das vides. Entrou Setembro e já pouco falta para as vindimas e o Julião recomeçou as canseiras anuais de preparação dos artefactos que, muito em breve, numa actividade louca, irão entrar em acção. Lá fora, na eira, espalham-se cestos e gigas misturados com arcos e aduelas de pipas e alguns túneis de bocas abertas a sofrerem a artística reparação do Ricardo tanoeiro. Há material da dorna e barrotes do cachaço da prensa do lagar que já foi lavado e reluz como novo no recanto frontal do ladrilho.

Na penumbra do interior da cave, almejam-se as grandes e robustas pedras de granito que formam o tanque rectangular, lagar onde as uvas serão primeiro pisadas com os pés e posteriormente esmagadas na prensa que se vê ao centro desarmada e, por cima dela, a trave de pressão em carvalho velho, enfiada num eixo de pedra suspensa na parede da residência.

O fuso, que desce desde a concha até à monstruosa laje suspensa pela tranca, aparece polido de fresco e oleado com banha de porco. Ao alto, e paralelas à vara, as virgens da frente e de trás perpetuam-se a guiar aquele maciço de madeira bruta e, já fora do enorme reservatório, surge a tina luzidia contendo o cesto coador do mosto.

A azáfama é grande aqui em Bairros. Dos campos que rodeiam a freguesia, chega um perfume macio a erva, canas de milho de espigas trigueiras e a uvas maduras que antecedem um outro a taninos, lagareiro, a mosto fermentando nas adegas espalhadas um pouco por todo o vale.

Chiam os carros de bois no aperto dos caminhos em missão de recolha de abundante colheita de abóboras e arreganhadas espigas do cereal que há-de dar o pão de cada dia. Aproxima-se o momento da mais importante das apanhas, aquela que garantirá mais um ano de sobrevivência se for abundante. Outros rendimentos aqui não existem; se a terra não for generosa no compensar do tenaz esforço desta nobre gente, muitas agruras terão de passar e outros tantos projectos de vida facilitada terão de aguardar mais um ano, recolhidos no infinito sacrário das esperanças.

Povo humilde e generoso este de Castelo de Paiva que, no percurso dos tempos, quase sempre desgraçados da sua existência, prestaram honras e vassalagem a tiranos que lhes roubaram quase tudo e ergueram homenagens a gente que nunca soube o que é cavar um campo, mas amealhou colossal riqueza em dinheiro e haveres à custa do seu esforço colectivo. Fazem-no com o mesmo desprendimento com que podam as vides, amanham os campos e regam os milhos. Forçosamente distantes do poder central, separados do todo nacional por uma linha imaginária e só imaginada na cabeça de alguns estúpidos senhores, nem sequer pedem ajuda pois sabem bem que manter-se incógnitos é a melhor forma de sobreviver. Seria legítimo protestar mas como há alguma gente em Sobrado que vende a segurança e liberdade dos conterrâneos a troco de uma malga de vinho, o mais certo seria acabarem por baixo do posto da guarda, na cadeia, a olharem permanentemente para a estátua do Conde.

Todo o poder ditatorial é cego e sacana, mesmo composto por gente oriunda desta região, aniquila os projectos dos simples, cedendo sempre às conveniências dos que o sustentam, ignorando por completo que, quando acabarem os campos cultivados, estará também extinta a valente e heróica raça Lusitana.

Aqui já não é litoral, muito menos Douro; a faixa que absorve a maior parte da riqueza encurtou terrenos por artes de magia, transformando esta região que dista apenas cinquenta quilómetros do Porto, na mais permitida e lamentável das interioridades, assemelhando-se a baldios ou terras de ninguém. A única ponte que une as duas margens do Douro já tem mais de cem anos e aparece na paisagem como um cangalho estreito e velho. As duas que atravessam o rio Paiva perdeu-se-lhe a conta da idade, mas sabe-se, pela fisionomia dos traços, serem obra dos povos Romanos. Tudo tao perto e tudo tao longe como lápide eterna a explicar ao mundo as razões objectivas do persistente atraso de um país.

O Julião é um homem forte, avermelhado da cara, que parece ostentar um sorriso permanente e traz na cabeça um chapéu de palha de abas largas, tão velho como ele, que o protege das inclemências do sol enquanto trabalha as terras. Sentou-se no rebordo do canastro agora de portas escancaradas, aguardando as espigas do milho desfolhadas, deixando soltar-se-lhe livre o pensamento que divaga nas longínquas paragens do passado. Afloram-lhe lembranças que voam na vertigem da idade que já vai avançada como noitada da festa de S. Domingos e só descansam acolá, do outro lado da Paiva, onde os olhos esquadrinham solos de Travanca, num súbito estremecimento do corpo, por ter sido aquela a terra pequenina onde nasceu.

Chegou criança a Bairros, trazido no colo de uma mãe que bem cedo perdeu o amparo do marido e, forçada pelas adversas circunstâncias da vida, teve de atravessar o rio e instalar-se na encosta do outro lado onde vegetam as vides que prometiam sobrevivência.

Travanca, terra de Cinfães tão distante da Vila, encravada entre as serras e o rio Paiva que lhe beija os pés que são gigantes penedos de granito mergulhados na água numa aflição pungente a tentar impedir a perda do regadio, nas funduras da ponte romana da Bateira e a deixar-se lavrar por mãos calosas de outros desventurados em declives acentuados também manchados com uvas e frondosos castanheiros, julga que a sede do concelho já nem sequer sabe que este pedaço de mundo lhe pertence.

Toda a expectativa destas pessoas reside nos campos e nas vinhas que, se Deus quiser, hão-de parir o encorpado e delicioso néctar de Baco, ansiosamente esperado e acalentado na alma destes seres dos campos que lutam desesperadamente como escravos a remar em antigo veleiro de piratas.

Retomam-se as tarefas da vida. O Julião grita pela esposa que, ocupada nas lides da cozinha, cumpre também as suas obrigações como quem desfia rosário de penas ao longo de uma vida inteira.

Na sala da humilde habitação está um quadro dependurado com a fotografia dos dois no dia do seu casamento, mas esses rostos de juventude em pouco ou nada se parecem com estes, desfigurados, rugosos, gastos e curtidos pelos anos.

– Ó Anunciação, corta aí um salpicão às rodelas e traz broa e azeitonas aqui para o senhor Ricardo meter uma bucha. – Diz ele a dirigir-se para a adega com uma jarra de barro na mão.

É a hora da merenda aqui em Bairros. No logradouro da casa do caseiro, servida em toalha bordada que protege a mesa de pedra assente debaixo da figueira, com as galinhas a depenicar as couves e ervas que nascem em redor, tendo como cenário a verdura dos campos que se alongam pelas serras até se perderem de vista, procede-se ao repasto.

O vinho laçou a caneca de porcelana, vivo e escorreram gotas vermelhas nas paredes exteriores da vasilha que ficaram paradas a meio do caminho, gordas como melaço risonho.

O lavrador está feliz e contente e, como tristezas não pagam dívidas, apetece-lhe cantar. Entra outra vez na adega e de trás da porta fronha retira a viola braguesa que dedilha sem grande mestria e um som de festa espalha-se como sulfato nos campos:

Ó terra da minha alma
Ó terra da minha alma
Lugar da minha afeição

Ora como é lindo

Lugar da minha afeição
Que me dá paz, me dá calma
E alegra o meu coração

Não tenho mais que te dar
Não tenho mais que te dar
Nem tu mais que me pedir

Ora como é lindo.

Nem tu mais que me pedir
Aqui tens meu coração
E a chave para o abrir

Voltou o tempo da saudosa alegria como recordação ainda viva da festa de Nossa Senhora dos Aflitos em que, em romaria, ele e os amigos entravam no arraial apinhado de gente, tocando e cantando a Chula do Douro ao redor da capela:

Venho de cima do Douro
Venho de cima do Douro
De ouvir cantar o coelho

De ouvir cantar o coelho
Namorei uma menina,
Pela trança do cabelo.

Cima do Douro é lima
Cima do Douro é lima
Mais abaixo é limão

Mais abaixo é o limão
No meio tem um retiro,
Onde os meus amores vão.

Meu querido rio Douro
Meu querido rio Douro
Rio de tanto penedo

Rio de tanto penedo
Se não fora o rio Douro,
Não tomava amores tão cedo.

A esposa apareceu no pátio a limpar as mãos no avental de chita castanho às florinhas brancas; o largo sorriso desenhado no rosto com sinais de velhice precoce, deixou à mostra uma boca desdentada que desmente a perfeição daquela captada num momento feliz e distante e que se perpetua a preto e branco no antigo retrato encaixilhado e dependurado da sala.

Tudo passa, mas nem tudo entra no infinito rol do esquecimento; os tempos antigos eram duros mas, por estranho que pareça, havia alegria no povo. As feiras eram animadas e até nos Onze e nos Vinte e Seis em Nojões se dançava no meio das tendas e do gado e cantava-se ao desafio no tasco da Leopoldininha e do Landreiro.

Agora é preciso começar a vindimar os campos, manter acesa a chama de um vinho que merece grandes cuidados e, apesar de tudo, o Julião sabe que será impossível reinventar o espírito de uma época mesmo desditosa que ela por ventura tenha sido; atira o chapéu para o cimo da cabeça e mergulha de novo na esperança que acalenta.

O rio Paiva, lá em baixo, segue indiferente o seu percurso; ali bem perto, no Castelo, funde-se com o Douro, outro rio que, meio desprezado, ainda não sabe o seu futuro propósito e juntos esquecerão as muitas tragédias deste subjugado povo porque o seu comum destino é o mar e os dois sabem bem que no oceano, por enquanto, ninguém manda.

Publicado no livro Douro Lindo

SOBRE O AUTOR: Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do Douro; Douro Inteiro;  Douro Lindo; A Ninfa do Douro; Palavras –  Conversas com um Rio; Fado Falado –  Crónicas do Facebook e Amanhecer (Poesia). Colabora com o Correio do Porto desde junho de 2016.

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