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Na Pele do Lobo – 2.º fascículo

Na Pele do Lobo – 2.º fascículo

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2.º fascículo do texto “Na Pele do Lobo“ de Manuel Amaro Mendonça. Este texto é um trabalho de ficção. Nomes, personagens, lugares, negócios, eventos e incidentes são, ou os produtos da imaginação do autor, ou usados de forma fictícia. Qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, ou eventos reais é mera coincidência.

A missão

QUANDO tocaram as laudes, foi Félix quem o veio acordar, pois estava esgotado pelo esforço de limpar e pelas poucas horas de sono que teve. O vizinho ainda inquiriu timidamente o que se passava com ele, que além do cansaço, estava corado e os lábios inchados e mais vermelhos que o costume. João respondeu de forma um tanto seca, mas com um pálido sorriso, que tivera um pequeno desarranjo das entranhas, mas que já estava tudo a ir ao normal, não precisava de se preocupar e escusava de falar no caso dele a quem quer que fosse. O monge olhou-o com uma careta de preocupação, mas assentiu.

Apressaram-se no caminho até se juntarem aos restantes monjes e aos cânticos que entoavam, no caminho para a capela.

Terminadas as laudes, os monges encaminharam-se em silêncio até ao refeitório para o desjejum enquanto ouviam um sermão de um dos anciãos, ou uma das leituras dos evangelhos. Já estavam sentados à mesa no refeitório quando todos olharam desconfiados, ao ver o próprio abade a subir ao púlpito. Havia algo de muito importante a dizer!

O velho abade Mateus puxou o capucho. Aquele perfil de águia, na cabeça de feições talhadas em couro antigo, focou os encovados e cansados olhos azuis na audiência. As sobrancelhas hirsutas, cinzentas e o pouco cabelo, da mesma cor, totalmente despenteado, emprestavam-lhe o ar de um Matusalém acabado de acordar de um sonho de séculos. As canecas e o pão encontrava-se já nas mesas, mas ninguém se atrevia a servir-se.

—  Irmãos! — Começou, na forte voz, incompatível com tal criatura.
—  Dirijo-me a vós com duas comunicações: para aqueles que ainda não sabem, e falo assim, porque este mosteiro, benza-o Deus, por vezes parece mais um ninho de lavadeiras a levar e a trazer novidades, do que uma das Casas do Senhor onde se deviam de limitar a dar as Graças a Ele. Mas dizia eu, para os que ainda não sabem, que passou ontem por este mosteiro uma família de São Cristóvão da Chã, a algumas léguas daqui. Vinham desesperados, pediram água e alimentos e não se quiseram hospedar, porque era sua intenção afastarem-se depressa desta região. Segundo eles, uma peste terrível atacou as gentes daquela aldeia e estão quase todos com febrões, deliram e vagueiam pelas ruas durante a noite. A nossa missão, além de ser a de portadores e divulgadores da palavra de Deus, é também a de acudir aos aflitos e enfermos e levar-lhe a Sua compaixão. Vamos enviar um grupo de irmãos para ajudar estes nossos vizinhos e ao mesmo tempo perceber que doença é esta e que precauções teremos de tomar para evitar que se propague.

O idoso abade tornou a percorrer a audiência com o seu olhar aquilino. Ninguém dizia uma palavra, pelo que o orador continuou.

—  A segunda comunicação tem a ver com algo muito mais mundano. Quando regressava ao meu alojamento, esta madrugada, vi um trilho de pegadas enlameadas que atravessava o corredor norte, desde o exterior, até perto das latrinas. — Fez uma paragem, pousou as mãos sobre a balaustrada do púlpito e suspirou audivelmente. — É UMA PORCARIA! UMA OBSCENIDADE! — Gritou, de repente, fazendo metade dos monges saltar nos bancos. — Não basta fide et labore (fé e trabalho)! Sujar a casa onde se pratica a obra do Senhor? E não limpar? Quero saber quem fez aquele serviço! Espero que a alma pecadora que assim procedeu, não falhe na lavagem dos seus pecados e conte ao seu confessor. Depois, iremos saber porque é que não limpou a imundice que fez, vamos saber o que é que andava a fazer fora dos alojamentos à noite e… qual a penitência a que se irá submeter.

Olhares preocupados cruzaram-se enquanto procuravam uma expressão de culpa em algum dos presentes. João, olhos fixos no chão, transpirava e deu uma joelhada no frei Félix que o olhava, incrédulo.

Dando por concluída a sua intervenção, o austero abade desceu do púlpito e passou pelo meio das mesas, sem se deter e abandonou o refeitório, não sem antes executar uma ligeira genuflexão para o enorme crucifixo na parede. Gradualmente os sons dos pratos de madeira e caçarolas de metal começaram a fazer-se ouvir, embora sem grande restolho e sem uma única palavra.

Assim decorreu a refeição, que acabou rapidamente, até que frei Bento, o segundo na hierarquia, se ergueu seu lugar e começou a caminhar para a porta entoando um novo cântico. Quase imediato, os restantes monges ergueram-se e levaram os utensílios para uma mesa no topo da divisão, enquanto o acompanhavam na oração cantada e alinhando depois, em fila, junto dele. Assim que todos terminaram a tarefa, os responsáveis das cozinhas iniciaram o transporte das louças para as lavagens e frei Bento abandonou o refeitório, logo seguido pela fila de monges, sempre a entoar Graças ao Senhor. Era chegava a hora de se dirigirem aos claustros onde eram distribuídas as tarefas do dia.

Mesmo à saída, encontrava-se o irmão Simão, que, tocando simplesmente no ombro de alguns dos monges, indicava-lhes que formassem fila atrás dele. João sentiu-se gelar, quando Simão lhe tocou no ombro. Olhou-o nos olhos, numa expressão de espanto, ao que aquele devolveu um acenar afirmativo e apontou a as costas dele com o queixo. O atemorizado frade, obedeceu, tal como os outros sem deixar o cântico, mas ainda olhou para trás, para deitar um olhar desolado a Félix, que encolheu os ombros, seguindo o seu caminho.

Assim que Simão achou que a sua comitiva estava completa, iniciou a marcha em sentido contrário ao claustro, na direção das latrinas. João quase chorava, enquanto refletia: “Algum dos irmãos me denunciou… teria sido Félix? Não, ele não faria isso. Deve ter sido algum daqueles com quem me cruzei.  O irmão Anastásio, por exemplo, é mau e gosta de fazer sofrer os outros. Quando é preciso “ajudar” com o flagelo, aí está ele disponível… ai o chicote… só lhe sentira as vergastadas uma vez e gostaria de não as sentir mais… ou o cilício! Aquele terrível cinto farpado, com as lascas cravadas na pele… como doía… cada passada que se dava, era como a lança que perfurou o Lado do Salvador. Da ultima, vez levara mais de duas semanas a curar os ferimentos… Senhor, tende piedade de mim, poupai-me do sofrimento, só pequei por medo!”

Estas considerações eram feitas em simultâneo com o cântico que entoavam na sua marcha, seguindo frei Simão, cuja voz era quase inaudível, fruto de uma forte pneumonia que apanhara há uns anos, após uma penitência autoinfligida nas águas da ribeira de Pitões. Simão era um acérrimo defensor das penitências e não se negava a elas, todo o seu corpo tinha marcas de flagelos e cilícios… algumas onde nem o próprio diabo se lembraria.

Chegaram à porta lateral da capela e entraram para o centro da nave onde as suas vozes ecoavam agradavelmente. Aguardava-os o abade Mateus, de joelhos no chão granítico, em frente ao altar. Ergueu-se assim que eles se aproximaram e os seus olhos coruscantes avaliou-os, um a um. Depois, com um sorriso beatífico, fez sinal para se silenciarem e indicou os bancos de madeira. Assim que todos se sentaram, benzeu-se na direção do altar antes de Lhe voltar as costas e enfrentar os olhares curiosos dos monges.

—  Irmãos. —  Começou sem mais delongas. — Todos me ouviram contar o que se passou ontem. Os camponeses em fuga estavam apavorados e aquilo que me descreveram deixou-me muito apreensivo. Disseram que desapareciam aldeãos da noite para o dia e que outros ficavam com febres muito altas, alguns morriam… mas o pior de tudo, é que eles suspeitavam da mão do “inominável” nesta doença. Não vou conspurcar este lugar sagrado com o nome daquele que o Senhor expulsou dos céus, mas o homem contou que alguns latiam ou uivavam como lobos.

Todos se benzeram praticamente em simultâneo.

Nenhum dos recém chegados formulou uma palavra, quer por respeito à hierarquia, quer pelo pavor que lhes estava a ser infligido, mas os seus olhos faziam muitas perguntas ao abade, que continuou o seu raciocínio.

—  É preciso ir saber o que se passa em São Cristóvão. Temo que uma doença muito grave esteja a grassar por lá e, se for o que eu penso, que o bom Deus nos proteja e nos ajude a tomar as melhores decisões.

Todos os frades se olharam, como se de repente se tivessem apercebido finalmente da presença uns dos outros.

—  Mas, reverendíssimo, porque requereis a nossa presença? — Perguntou o irmão Filipe, um homem com mais de um metro e oitenta, com um forte sotaque gaulês. Dizia-se à boca pequena, que era um cavaleiro templário, escondido do rei da França no mosteiro.

—  Irmãos. — Continuou o abade. — Discuti por muitas horas com frei Simão e frei Bento sobre o que se haveria de fazer e acabamos por acordar em enviar um pequeno grupo à aldeia. Os vossos nomes foram os escolhidos.

Todo o grupo se tornou a olhar, desta feita avaliando-se. Simão mantinha-se em pé ao lado do abade, de olhos baixos e com as mãos cruzadas sobre o estômago e ocultas nas amplas mangas do hábito. Entretanto chegou frei Bento que pediu autorização para se reunir a eles. Eram agora três, em pé, frente aos cinco atónitos monges que começavam a ter dificuldades em sustentar o olhar uns dos outros, sempre a ver qual deles deveria fazer as perguntas.

—  Nós somos servos do Senhor! É a nossa obrigação acudir aos necessitados e se há uma doença a grassar entre os nosso vizinhos, é nosso dever empregar a nossa ars curandi (artes curativas) para os ajudar. — Fortalecido com a chegada de Bento, Mateus engrandecia o discurso. — Os irmãos João e David, têm os conhecimentos das plantas medicinais, Tiago, com os seus conhecimentos enciclopédicos ajudará a perceber que maleitas sofrem os aldeãos. Filipe e Domingos, são os mais fortes, ad cautelam (por precaução)… por último irá o irmão Simão, também ad cautelam; os seus conhecimentos podem ser úteis, visto que não temos explicação para o estranho comportamento que nos descreveram. E agora não percamos mais tempo, irmãos, tempus fugit (o tempo voa). Têm de partir de imediato, para chegarem ainda com dia.

A um gesto do abade, todos o seguiram, cabisbaixos, apreensivos, digerindo lentamente a tarefa que lhes fora destinada. A fechar a comitiva iam frei Bento e frei Simão. Caminharam pelo claustro, em direção à porta que conduziria ao exterior. Pelo caminho, três outros frades entregaram a cada, um odre com água, um cobertor grosso e um bornal com alguma comida… estava tudo bem organizado e fora guardado um silêncio perfeito, pois ninguém havia comentado nada.

João sentia a transpiração gelada a correr pelas costas, ensopando o tecido do hábito.

Chegados aos portões que conduziam ao exterior, que foram diligentemente abertos pelos monges que trouxeram os mantimentos, o abade cumprimentou e disse algumas poucas palavras a cada um dos elementos da expedição até chegar a frei João, a quem deitou um olhar preocupado, enquanto perguntava:

—  Estais bem, irmão? Tendes o rosto afogueado e os olhos húmidos…

—  Sim, obrigado por perguntar, reverendíssimo, estou apenas a recuperar de uma pequena sezão, causada pela última penitência na ribeira. — As mentiras avolumavam-se a uma velocidade estonteante e João corou ainda mais ao dizer esta.

—  Valha-me o Senhor! — O rosto talhado em madeira de Mateus contorceu-se numa expressão de compaixão. — Não sabia que estáveis doente, temos que arranjar outro irmão…

—  Não, por favor. Eu estou bem, Deus vela por mim e a caminhada há-de fazer-me melhor.

—  Que Deus te abençoe, meu filho. — Era óbvio o alívio do abade. — Mas prometei-me que, quando regressardes, ireis cuidar dessa maleita com mais atenção.

—  Sim, reverendíssimo, a vossa bênção. — João estava, apesar de tudo, aliviado por abandonar o mosteiro e  curvou a cabeça para ser abençoado.

Sem uma palavra, Simão empreendeu o caminho pelo trilho que se dirigia à floresta próxima, quase subjugada pelo cume da montanha atrás. Na sua peugada seguiam Filipe, Domingos, Tiago e David. João fechava o pequeno cortejo.

SOBRE AUTOR:
Manuel Amaro Mendonça é licenciado em Engenharia de Sistemas Multimédia pelos ISLA de Gaia. Nasceu em Janeiro de 1965, na cidade de São Mamede de Infesta, no concelho de Matosinhos, a Terra de Horizonte e Mar.
Ganhou prémios em dois concursos de escrita e os seus textos foram selecionados para mais de uma dezena de coletâneas de contos, de diversas editoras.
É autor dos livros “Terras de Xisto e Outras Histórias” (Agosto 2015), “Lágrimas no Rio” (Abril 2016) e “Daqueles Além Marão” (Abril 2017), todos editados pela CreateSpace e distribuídos pela Amazon.

Outros trabalhos estão em projeto, mantenha-se atento às novidades em http://debaixodosceus.blogspot.com

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