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Na Pele do Lobo – 1.º fascículo

Na Pele do Lobo – 1.º fascículo

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1.º fascículo do texto “Na Pele do Lobo“ de Manuel Amaro Mendonça. Este texto é um trabalho de ficção. Nomes, personagens, lugares, negócios, eventos e incidentes são, ou os produtos da imaginação do autor, ou usados de forma fictícia. Qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, ou eventos reais é mera coincidência.

FREI João acordou sobressaltado, com os olhos arregalados na escuridão. O suor frio escorria-lhe da testa e gelava-lhe as costas, correndo em grossas gotas ao longo da coluna.

Estava deitado no chão, de bruços e isso era tudo o que conseguia perceber. Atabalhoadamente, tateou em volta para descobrir onde estava. O silêncio era absoluto no interior do mosteiro de São Bento de Asnes, aliás como sempre. A única coisa que perturbara o sossego, fora o mesmo barulho que o despertara para a consciência que se encontrava no chão.

Ergueu-se sobre os joelhos, com dificuldade e encontrou os cobertores do catre, logo à frente. Estava na sua cela, portanto… pelo menos parecia.

Bateram timidamente na porta.

—  Irmão João? — Uma vozinha atemorizada e abafada fez-se ouvir. — Está tudo bem? Ouvi um grande barulho.

Uma trémula luminária trouxe alguma claridade ao cubículo, à medida que a grossa porta de madeira era empurrada para dar entrada a um homem baixo e gordo, de olhar assustado, empunhando um toco de vela.

—  O Senhor seja louvado, irmão Felix! — Congratulou-se frei João, ainda de joelhos, com a luz que a chegada do companheiro lhe trouxe. — Não sei o que aconteceu, acho que caí da cama. Estava para aqui deitado no chão.

O próprio João, era um pouco gordo, mas de uma estatura mais elevada que o seu vizinho, de quem aceitou o braço para acabar de se erguer.

A exígua cela era apenas composta pelo catre, um banco que fazia as vezes de mesa de cabeceira, um balde para as necessidades e uma mesa onde pouco mais do que um livro cabia. Na parede da cabeceira da cama, um Cristo numa agonia atroz, dominava todo o espaço, lembrando o sofrimento d’Ele. Dois tocos de vela. Apagados, jaziam no chão, logo ao lado do banco que caíra sobre o balde e espalhara o fétido conteúdo no chão. Um cheiro a fezes e urina empestava o ar.

—  Valha-me a misericórdia divina. — Lamentou-se João, assim que o olhar descaiu sobre os dejetos. — Olha que porcaria aqui está! Trouxe o balde para cá porque me sentia adoentado, temia não conseguir chegar às latrinas e vejam lá…

—  Credo em Cruz, irmão! — Benzeu-se o outro. — Estais com um grave problema, para que vos saiam tais miasmas das entranhas! Devíeis falar com o frei David.

Envergonhado, João aceitou ajuda para acender as velas, mas recusou-a para limpar e despediu o companheiro alegando que ele o faria sem dificuldades. Félix acabou por acatar a decisão do vizinho, mas, antes de regressar à sua cela, lembrou  que faltavam menos de duas horas para as laudes matutinas (primeiras orações da manhã).

De novo sozinho, depois de uns segundos de reflexão, abandonou a cela para ir buscar o necessário para a limpeza. Deixou uma vela acesa e levou outra consigo.

Sentia-se algo confuso, o ambiente parecia-lhe irreal e o ar espesso, que respirava com dificuldade. A transpiração gelava-o e provocava-lhe arrepios, mas sentia os lábios e as mãos anormalmente quentes… devia estar a incubar uma febre, o que não era nada bom. Da última vez que estivera doente, o frei David por pouco não o matou com as suas mezinhas. Benzeu-se com a recordação.

Nos corredores nus e silenciosos (e felizmente sem viv’alma) reinava uma penumbra pesada, quase escuridão, onde ecoavam os passos secos das suas sandálias. As portas das celas encontravam-se invariavelmente fechadas, o inverno estava frio e todo o mosteiro dormia ainda.

Ao passar num dos acessos ao claustro, a luz difusa do luar mostrava uma parte do chão, onde se viam, claramente, pegadas marcadas a lama no granito do chão mais ou menos imaculado. Surpreendido, aproximou a vela para verificar a direção das pegadas. “Quem teria feito isto?” — Perguntou-se, incrédulo. — “O abade Mateus não permitiria que se deitassem com o chão naquele estado!”

As “patinhadas” seguiam na direção contrária de onde ele provinha e resolveu segui-las, para ver quem fora o descuidado que fizera tal serviço. Os seus olhos arregalaram-se de espanto e pavor: as suas sandálias estavam cheias de lama e estava a deixar um segundo trilho de pegadas por onde passara. Aquilo não podia ser! Não se lembrava de calçar as sandálias, logo, já as tinha e de certeza que não estava a dormir com elas! Benzeu-se nervosamente, não tinha ideia de ter saído, nem sequer de se ter levantado, que se passava com ele?

Correu e foi buscar a vassoura, um balde de madeira e uns trapos, começando por limpar as sandálias e depois o chão, corredor fora, mas apenas desde o local onde se encontrava até à sua cela, não havia tempo para mais. Não queria ser surpreendido por nenhum dos irmãos, para que não lhe fizessem perguntas para as quais não tinha respostas.

À chegada à cela, conseguiu ver que Félix o observava do umbral do próprio compartimento. Fez-lhe um gesto de silêncio e ele recolheu-se sem uma palavra.

Limpou afincadamente o chão e encheu o balde com trapos sujos e malcheirosos que se apressou a fazer desaparecer pelos buracos das latrinas. Em seguida lavou-o  e repo-lo no seu lugar. Apenas se cruzou com dois dos irmãos que se levantavam mais cedo.

A higiene do corpo não era uma prioridade para os beneditinos; mudavam de túnicas interiores e hábitos com frequência, mas os banhos rotineiros, exceto para os doentes, eram desaconselhados. No entanto, no que tocava ao asseio de todo o mosteiro, o abade Mateus era implacável com quem prevaricasse: normalmente mandava-os fechar em celas com o flagelo (pequeno chicote de com pontas metálicas) para que se açoitassem como penitência, se o não fizessem, ou empregassem pouca convicção, iria alguém à cela para o fazer ao penitente. O próprio João já sentira na pele as mordeduras que chegavam ao osso e, se pudesse, não passaria por aquilo novamente.

Deitou-se e cobriu-se com o cobertor sem lençois, pois eram um luxo a que os monges não se podiam dar. Estava completamente esgotado e começou a pensar na sua situação que estava a ficar muito complicada. Olhou a mão esquerda, completamente roxa, onde um semicírculo de dentes humanos estava profundamente marcado entre o polegar e o indicador. Havia sangue seco em algumas das marcas… o frio que sentia e a cabeça a andar à volta, devia estar relacionado com aquilo… apanhara alguma moléstia naquela dentada, no seu estranho encontro do dia anterior.

*** *** ***

Na manhã de ontem, invariavelmente, andava a tirar as ervas daninhas e a compor os regos da horta, enquanto ia apanhando para uma cesta alguns tomates maduros. São poucos os monges que têm tarefas específicas, a regra de São Bento manda que todos façam e ajudem em tudo, mas, por uma questão prática, é bom que haja alguns “especialistas” que vão estar mais atentos às necessidades das suas funções, para que as não encararem como uma tarefa rotativa onde pode deixar os problemas para serem solucionados pelo que vier a seguir. A regra mandava também que os mosteiros fossem o mais autosuficientes possível e isso fazia com que houvessem oficinas, enfermarias, serviços de limpeza, pastorícia, cada destes serviços com um ou mais especialistas responsáveis.  Ele cuidava das hortas, todos quantos viessem ajudar nas tarefas, estavam sujeitos à sua autoridade… sentia orgulho nisso e o orgulho é um pecado. Terá de falar nele ao confessor e acatar a penitência que ele lhe indicar.

Estava então afastado dos companheiros, próximo de uma secção da muralha que ruíra há uns anos atrás e ninguém mandara reparar. Escolhia os melhores tomates, entre as filas de tomateiros “de estaca” que se erguiam a quase dois metros de altura, quando se apercebeu de alguém, ou algo, que se esgueirou do meio dos tomateiros para os feijoeiros. O restolho das folhas denunciava o intruso.

Desconfiado que se tratava de um dos rapazolas da aldeia vizinha, a roubar uns legumes, avançou, decidido a dar-lhe uma reprimenda… ou um chuto nos fundilhos. Assim que afastou a folhagem bruscamente, ficou estático de estupefação: um rosto feminino, belo, mas sujo, emoldurado por uma cabeleira negra, desgrenhada e cheia de folhas, fitava-o com olhos pequenos e assustados.

Estava a contar com um petiz traquina, que largaria a fugir assim que o visse, não uma visão daquelas.

Alarmada, a intrusa soergueu-se, permitindo a visão de praticamente todo o seu corpo nu. Os pequenos seios pendentes, com os mamilos eretos  e o triângulo hirsuto do ventre, funcionaram como um soco no frade.

—  O Senhor seja louvado! — Exclamou João, antes de se  benzer, tapar os olhos e corrigir rapidamente: — Que o bom Jesus nos proteja das tentações dos demónios!

Tornou a espreitar por entre os dedos; a rapariga continuava ali, atrás dela erguia-se o muro que a impedia de fugir e à frente estava o volumoso monge. Estava bastante suja, devia andar perdida há muito tempo, ou não tinha o juízo todo e fora abandonada pelos familiares. De todo em todo, era bonita e bem feita.

—  Minha filha! — Frei João recuperou, abrindo os braços e avançando. — Que se passou contigo? Vem a mim que te ajudo. Deixa que este servo do Senhor cuide de ti.

O rosnar típico de um animal selvagem fê-lo hesitar.

—  Não tenhas medo, que não te faço mal! — Insistiu o frade, quase tocando-lhe com uma das mãos.

Inesperadamente, rosnando como um cão, a rapariga projetou-se de um salto e cravou os dentes com toda a força na mão que ele tinha mais próxima. Ferrou-lhe uma dentada entre o polegar e o indicador e começou a puxar e a abanar a cabeça. O pobre frade gritava desesperadamente enquanto tentava libertar-se da dolorosa mordida e foi apenas quando deixou de puxar e começou a bater, sem qualquer pudor, na cabeça da rapariga, que esta largou a sua presa. Fez estalar os dentes próximo do rosto aterrorizado do homem e depois saltou literalmente por cima dele e desapareceu pela parte derrubada da muralha, para fora do mosteiro.

Quando os restantes irmãos acorreram, alarmados pelos gritos de João, este reconsiderava no que tinha visto. Como poderia explicar que vira uma mulher nua no meio da horta? E que explicação daria para o facto de a ter tentado agarrar? Na melhor das hipóteses, pensariam que estava a enlouquecer e a ter visões, na pior, que tinha tido pensamentos impuros com um demónio dos infernos e… o abade Mateus dar-lhe-ia uma penitência duríssima, tipo mergulhar nas águas geladas da ribeira todos os dias, durante uma semana… e jejum… não aguentaria mais jejum.

Às perguntas assustadas dos monges, respondeu que se assustara com um grande cão, que tomara por um lobo, mas que fugira alarmado com os seus gritos… atrás das costas, manteve a mão ferida, que latejava. Assim que todos regressaram aos seus trabalhos, ele ainda foi espreitar por cima do muro. Se fechasse os olhos, conseguia ainda rever aquele corpo firme e pecaminoso.

*** *** ***

Sempre fora cumpridor das suas obrigações… pelo menos das mais importantes, mas agora, no espaço de dois dias, estava a omitir várias coisas, a mentir, pois é praticamente o mesmo, para fugir ao castigo, quer dizer, penitência. Cada hora que passava, a trama adensava-se mais e surgiam umas mentiras para ocultar outras.

SOBRE AUTOR:
Manuel Amaro Mendonça é licenciado em Engenharia de Sistemas Multimédia pelos ISLA de Gaia. Nasceu em Janeiro de 1965, na cidade de São Mamede de Infesta, no concelho de Matosinhos, a Terra de Horizonte e Mar.
Ganhou prémios em dois concursos de escrita e os seus textos foram selecionados para mais de uma dezena de coletâneas de contos, de diversas editoras.
É autor dos livros “Terras de Xisto e Outras Histórias” (Agosto 2015), “Lágrimas no Rio” (Abril 2016) e “Daqueles Além Marão” (Abril 2017), todos editados pela CreateSpace e distribuídos pela Amazon.

Outros trabalhos estão em projeto, mantenha-se atento às novidades em http://debaixodosceus.blogspot.com

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