O BOI era o símbolo da valentia da nossa terra. O boi do povo!, explica o homem que tivera de fugir da sua aldeia, porque a barragem tudo engoliu: casa, sonhos, campos, odores, melancolia. Chegávamos o nosso boi ao boi do povo vizinho. Os animais olhavam-se, marcavam o território. Em redor, o povo quieto e mudo – mas os corações esbracejavam em sobressalto. Então, os bois surgiam, cegos de fúria, estalejavam os cornos. Se a chega fosse leal, turravam um bom bocado, sob a algazarra da gente a incitar o Bonito, a proteger o Malhado! Não havia empate. De um dos bois deixava a valentia no campo. Fugia. Por vezes, o vencido afocinhava, ferido. E nem sempre a vitória surgia pacífica: tudo se esclarecia com meia dúzia de pauladas e outras tantas cabeças a sangrar. A luta bovina acabou. Na última romaria, disse o homem sem terra, alguns dos nossos antigos habitantes crisparam-se com os antigos vizinhos: os outros eram em maior número, fizeram recuar os nossos. De caçadeiras nas mãos, nessa mesma noite invadiram a aldeia dos outros: esfacelaram, a tiro de zagalote, os fios da electricidade. A escuridão irromperia como alma penada. Olhe, as equipas regressam ao relvado. Os bois, os bois sem o olhar manso, corrige o homem sem terra.

Texto de Francisco Duarte Mangas publicado originalmente in O homem do saco de cabedal, Campo das Letras, maio de 2000, página 38, com ilustração de Inma Doval.

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