O MÉDICO Albino Aroso morreu, esta quinta-feira. Considerado o pai do planeamento familiar, faleceu em casa, no Porto, aos 90 anos. Corpo em câmara ardente na Capela Mortuária da Lapa e funeral marcado para sexta-feira, às 15 horas, para o cemitério local.
“Colher kiwis e tangerinas, plantar árvores e tirar umas ervas daninhas” numa quinta que possui em Guilhabreu, Vila do Conde, era a tarefa que Albino Aroso tinha planeado para as tardes da sua reforma. Sempre que o tempo ajudava, o ginecologista, antigo secretário de Estado da Saúde, despia a pele de médico, calçava as galochas, punha o boné e, de enxada na mão, tornava-se agricultor. Plantar pereiras, limoeiros e tangerineiras não eram tarefas complexas para ele. A atração pela terra vinha-lhe “desde a infância”, do tempo em que vivia em casa dos pais, modestos agricultores, na aldeia de Canidelo.
Com a mesma modéstia que o liga aos prazeres da terra, recebeu a notícia de ser o único médico português incluído num livro da Associação Médica Mundial (AMM) que congrega 84 associações de clínicos a nível mundial, sobre os 65 profissionais de saúde “mais dedicados” do mundo. “Não estava à espera. Para mim, é uma alegria enorme dizerem que contribuí para uma melhoria substancial [da mortalidade materno-infantil], mas fiz sempre as coisas desinteressadamente”, confidenciou à VISÃO, numa tarde de inverno, em 2005. Certo é que o médico revolucionou a área e inverteu os números que colocavam Portugal no fundo da tabela. Hoje, o nosso país encontra-se em quarto lugar, à frente da Inglaterra, EUA e França.
Aos 90 anos, sentia ter cumprido a sua missão: ser “útil aos outros e sobretudo às mulheres e crianças”. Oriundo de uma família grande (os pais tiveram seis filhos), é à mãe que atribui toda esta dedicação. “Tive a sorte de ter como mãe uma mulher simples mas muito inteligente, capaz de muito cedo me ter chamado a atenção para a situação da mulher e do homem no mundo.”
Quando foi estudar para o Liceu Rodrigues de Freitas e, depois, para a Faculdade de Medicina da Universidade do Porto acabou o curso com 16 valores não teve dúvidas em enveredar pela ginecologia. A partir daí nunca cruzou os braços. Nos primeiros anos de trabalho no Hospital Geral de Santo António (HGSA), no Porto, deparava-se frequentemente com abortos provocados por mulheres que já não podiam ter mais filhos. “Reagi à cultura de então as mulheres eram quase insultadas quando chegavam aos hospitais.” Inconformado, passou a recebê-las nas suas consultas das quartas-feiras.
Abriu a primeira consulta pública e gratuita de planeamento familiar do País, em 1969, e sofreu na pele as resistências religiosas e políticas da época. “Na altura, tive apenas apoio de D. António Ferreira Gomes, bispo do Porto, que chegou a estar exilado e apoiava o planeamento da família.” Antes do 25 de abril, Albino Aroso participou em conferências ao lado de Francisco Sá Carneiro. Uma ligação que possibilitou o convite para a Secretaria de Estado da Saúde do VI Governo Provisório. Nessa época, 1976, publicou o despacho que instituiu o planeamento familiar na Saúde Materno-Infantil. No entanto, foi mais tarde, aquando da sua segunda passagem pela Secretaria de Estado da Saúde, no tempo de Leonor Beleza, que revolucionou positivamente o panorama da saúde materno-infantil.
A partir do trabalho realizado pela primeira Comissão Nacional de Saúde Materno-Infantil conseguiram inverter-se os números da mortalidade durante o primeiro ano de vida de forma surpreendente. A ex-ministra da Saúde e atual Presidente da Fundação Champalimaud foi sempre uma das suas amigas mais próximas. Leonor Beleza recorda as campanhas de sensibilização sobre fertilidade que levaram Albino Aroso a calcorrear o País. “Além de, para mim, ter sido uma honra ter sido meu secretário de Estado, sinto por ele um enorme reconhecimento como mulher”, afirma. “O mundo deve-lhe muito, é um homem com a capacidade rara de compreender as mulheres.”
Acérrimo defensor de que “toda a mulher portuguesa em trabalho de parto tenha à sua cabeceira um obstetra, um pediatra com conhecimentos de neonatologia e um anestesista”, orgulhava-se de ter contribuído para a valorização da maternidade. “Recordo-me que antigamente, nas aldeias, quando morria uma criança, as beatas diziam: ‘Morreu um anjinho. Felizmente vai direitinho para o céu.’ As pessoas consideravam até que era uma virtude morrer antes de pecar. Felizmente, tudo isto acabou.”
Homem de Direita, chegou a concorrer à presidência da Concelhia do PSD-Porto, contra Luís Filipe Menezes, numa tentativa de “mudar coisas que estavam entregues a politiqueiros”. Condecorado duas vezes, uma por Ramalho Eanes, com a Cruz da Ordem de Benemerência, e outra por Jorge Sampaio, com a medalha de Grã-Cruz da Ordem do Infante, reconhecia que, embora filiado no PSD, foram os governos do PS que melhor o trataram.
Um homem estudioso
A nível pessoal, no papel de pai e marido (casou com Laura Oliveira, com quem teve sete filhos), transmitiu à família a necessidade de esta funcionar como um todo. “Nunca dei um automóvel aos meus filhos, mas aos fins de semana o meu carro era para usufruto deles.” O mais velho, o arquiteto Pedro Aroso, 52 anos, lembra que o pai nunca distinguiu a educação dos rapazes da das raparigas: “As minhas irmãs sempre tiveram a mesma liberdade que eu e os meus irmãos.” O arquiteto descreve o pai como “um homem de convicções, muito estudioso”.
Nos últimos anos, entre a participação em conferências e a paixão pela agricultura, passava parte dos dias na companhia de literatura científica. “Sublinhava tudo o que é importante”, conta o médico ginecologista Serafim Guimarães, que trabalhou com Albino Aroso mais de duas décadas e com ele almoçava todas as quartas-feiras, num restaurante da Praça Carlos Alberto, no Porto.
Em casa, de manhã bem cedo ou à noite, gostava de ouvir música clássica, especialmente a Nona Sinfonia de Beethoven. E nunca chegava ao fim do dia cansado. Ainda que tivesse andado quilómetros a pé pela cidade. “Autocarro e carro só se o destino for demasiado longo.” Até hoje, apesar de muito ter conseguido, continuou sempre a ser um interveniente na luta pelos direitos das mulheres. “Vivemos numa sociedade em que os homens acham que os ovários e o útero são da humanidade e os seios e a vagina são deles.”
1.º parágrafo publicado in Jornal de Notícias e restantes na Visão (texto de Florbela Alves e fotografia de Lucília Monteiro)