A AUTORA que se destacou na literatura infantil – mas não só – nasceu em Vila Real e começou a publicar livros em 1955 com o volume de contos “Província”. Luísa Dacosta foi também professora do ensino público desde 1968 até 1997, altura em que leccionava na escola Francisco Torrinha, no Porto. A escritora recebeu várias distinções, entre os quais o Prémio Vergílio Ferreira, em 2010. Um ano antes foi homenageada na Feira do Livro do Porto.
O funeral está marcado para terça-feira, dia 17, no tanatório de Matosinhos, onde o corpo será velado a partir das 15 horas de segunda-feira.
Publicado in Jornal de Notícias
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Lamento sair desta vida bastante desiludida. Por exemplo, em relação à alegria com que festejei o fim da II Guerra, a pensar que nunca mais havia guerras, e que vinha aí a solidariedade, a democracia e a liberdade para todos. Mas não. Estamos num mundo criminoso em que 70 por cento da população mundial não tem acesso à água, à comida, à saúde, à educação. Sobretudo, incomoda-me partir com a certeza de que a parte mais esmagada deste mundo é a mulher. Isso dói-me. A pessoa sai daqui a pensar que certas coisas pelas quais lutou já nunca mais aconteceriam, e afinal pioram. Nunca pensei que as mulheres se fizessem a elas próprias bombas. É preciso um desespero terrível e já não acreditar em mais nada, para se fazer uma coisa dessas. Isto significa que criámos um mundo que é imoral. Há uns que julgam que já viram tudo, que já sabem tudo, que já têm tudo, e há outros que andam a esgravatar, a ver se encontram umas sementes na terra. É uma coisa atroz. Nunca fui optimista, mas tão pessimista como agora, também não.
Quando nasci, o mundo praticamente não existia fora do globo terrestre e dos mapas. Não havia rádio, nem telefone, nem televisão. Lembro-me de ouvir o rádio, mas só quando já teria uns seis anos. O meu pai comprou um, porque gostava muito de ouvir ópera. Por vezes isso misturava-se com as rezas da noite, porque a minha tia era muito dada a rezar. Eram rezas bonitas, algumas em verso. Uma ou outra seria pouco própria para crianças, como a oração da noite: “Nesta cama me deito, não sei se me torno a levantar”. Era a ideia da morte, que também não se escondia às crianças. Quando, em 1992, fui internada de urgência no Instituto de Oncologia, os médicos não sabiam se eram capazes de me pôr direita. Durante muito tempo tive a ideia de que morreria aos 40 anos. Fui muito influenciada pelo retrato de uma morta que nunca conheci: a minha avó Ana. Eu era muito parecida com ela, segundo todas as pessoas diziam. Como criança, convenci-me que era uma ressurreição. A pretexto disso perguntavam-me se eu acreditava na reincarnação. Claro que não. Não tinha, sequer, a noção de reincarnação. Mas alimentava a ideia de que eu podia ser uma segunda oportunidade dada à minha avó, porque ela tinha tido uma vida infeliz e morrera tuberculosa aos 40 anos. Eu tive a minha tuberculose aos 20 e demorou a passar, porque ainda não havia remédios suficientes. Houve muitos primos meus que morreram, inclusive uma prima com 18 anos, que andava comigo no liceu. Morreu ela e o irmão. Como tive a tuberculose depois dos 20, pensei que talvez não passasse dos 40. Quando era pequena brincava muito, quase até a exaustão, a ver se me recordava da vida que tinha vivido. Isso foi tão forte em mim, que escrevi um livro que se chama O Planeta Desconhecido e Romance da que Fui Antes de Mim.
Agora começo a ter a noção de que possivelmente o tempo está a acabar. Preocupa-me, na medida em que às vezes me perguntam se quero cair para o lado, porque ainda continuo a ir dar umas aulas, como fui recentemente aos Açores, onde apanhei uma pneumonia. Eu respondo que é exactamente isso que quero: cair para o lado. Há só uma coisa que me apavora no fim: o tempo de desgaste que as pessoas às vezes têm numa cama. Ainda vivo sozinha, ainda faço as minhas compras, ainda faço a minha comida. Faço uma vida bastante normal. Não desejo a dependência. Custa-me mais aceitar a degradação do que a morte. A dependência é uma coisa terrível. A minha mãe era uma pessoa de grande vontade. Partiu as duas pernas, foi operada e nos últimos tempos ficou acamada. Lembro-me que quando eu a lavava, ela chorava. Devia ser uma coisa terrível. Para uma pessoa independente como eu, isso é uma humilhação que me aterra.
Sou um pouco irrequieta. Um dos desgostos grandes que tive foi deixar de subir às árvores. Subi às árvores até talvez aos 50 anos. Não era pessoa de estar muito sossegadinha. O facto de viver na província teve uma vantagem, porque, embora naquele tempo não se usasse, eu tive sempre uma educação mista. Na província há turmas tão pequenas que nem podia ser de outra maneira. No meu sétimo ano creio que éramos apenas sete em Letras.
Uma das coisas que me custou bastante foi não saber andar com o arco. Os meus primos faziam grandes corridas com os arcos. No meu tempo as meninas eram levadas a não fazer certas coisas. Havia uma recomendação da minha tia, que dizia que “quando uma menina assobia, estremecem céus e terra”.
Do que me lembro bem dessa minha infância é das orações que a minha tia nos obrigava a rezar. Tenho uma grande admiração pela figura de Cristo, que acho uma figura extraordinária, muito interessante. Normalmente as religiões estão ligadas a aspectos políticos, mas a figura de Cristo não está. É uma figura independente do social e do político. É uma doutrina puramente espiritual. Há uma grande capacidade de dádiva e perdão, que é o que me interessa mais. A igreja não me interessa nada. A igreja, com Constantino, tornou-se uma religião de Estado, o que é um crime. Uma religião de Estado é uma coisa aberrante. Tive muito interesse por algumas personalidades religiosas, como o padre Joaquim Alves Ribeiro, que morreu no exílio e que não conheci, mas com o qual me escrevi até ele morrer. A Igreja fez-lhe o chamado exílio post mortem, que só se usava na Rússia. Não o trouxe sequer para Portugal. Foi exilado no tempo do Salazar e ficou na América. O estado do Vaticano é uma coisa impossível. Não tenho uma grande admiração pelo papa João Paulo II, que toda a gente admirou muito. Teve algumas posições que acho bastante retrógradas e, além do mais, foi um embaixador, que abriu embaixadas. Quando foi a Díli não beijou o chão de Timor, por causa das relações diplomáticas com a Indonésia. A religião só devia ter que ver com os aspectos espirituais. Se lermos o Alcorão, estão lá uma série de regras, sobre como é que se faz isto, como é que se faz aquilo. São regras das coisas civis. Faz-me lembrar as pessoas que não querem mudar, porque não querem perder direitos adquiridos. Mas a história é uma perda de direitos adquiridos. Os reis antes podiam matar. Um senhor podia ter escravos e hoje não pode. A vida evolui. Por isso acho que as religiões deviam estar separadas dos aspectos sociais e remetidas à componente espiritual.
Sou uma escritora marginal e bastante marginalizada, porque fiz sempre aquilo que quis, e só aquilo que quis. Tinha uma independência. Já sabia que morreria de fome se vivesse só dos livros. Era professora, algo que me dá muito gosto. É uma forma privilegiada de relação humana. Ainda hoje gosto muito de estar com os alunos. Tive crianças que passaram por dificuldades extraordinárias, mas a determinada altura vi que era capaz de escrever para eles. Ajudaram-me a escrever. Incluí no meu vocabulário algumas palavras criadas pelos alunos. A nossa língua é espantosa. Acho que temos uma língua privilegiada. É uma língua que tem dois tempos. Um para o tempo que se gasta, que é o estar, e um tempo para a eternidade, que é o ser. É das poucas línguas no mundo que tem isso. Depois temos uma coisa espantosa, miraculosa, que é poder conjugar pessoalmente o verbo no infinito. O infinito é o verbo fora do espaço e do tempo. Penso que é a única língua do mundo que consegue meter o tu dentro do eu. Quando digo “eu amar-te-ei”, mete o “tu” e depois é que fecha o verbo. Temos essa possibilidade espantosa. A nossa língua é mitológica.
Hoje, para qualquer pessoa, é muito difícil escrever. Há bastantes censuras. Antes, havia uma e tinha nome. Cortavam-nos um artigo no “Comércio do Porto”, mas tínhamos a “Vértice” ou a “Seara Nova”. Havia maneiras de furar um pouco. Não estou, de maneira nenhuma, a defender a outra censura. O problema é que hoje há censuras económicas, censuras políticas, censuras partidárias, “lobbys” de interesses. Pertenci ao Conselho de Imprensa. Fiz dois mandatos. Deixei lá escrito que tinha lutado muito contra a censura de Oliveira Salazar, mas era uma. Logo a seguir ao 25 de Abril houve também muitas censuras nos jornais. Nesse aspecto, estou de acordo com Voltaire. Entre a censura de muitos e a censura de um, prefiro a censura de um. Apesar de tudo é mais fácil de furar.
Não me vejo reformada. Fui dar uma aula à Faculdade de Psicologia, em Lisboa, e disseram-me para voltar no próximo ano. Eu respondi que, se estiver viva, lá estarei. Depois alguém me disse que eles sabiam o que é que iam lá buscar, mas e eu? O que é que ia lá buscar? Respondi que também sabia o que é que ia lá buscar. Vou buscar bafo humano, que é a única forma de sobrevivermos.
Tive dias terríveis na minha vida. Enterrei uma filha no dia de Natal. Não resistiu ao cancro a que eu resisti. As coisas mais gratificantes que tive na vida vieram dos afectos. Por exemplo, cartas que tive dos alunos. A afectividade toca-me bastante. A primeira aula que dei a seguir a ter estado internada foi um dos momentos mais emocionantes da minha vida.
A vida ensinou-me que não podemos viver sozinhos. Ensinou-me que não podemos viver sem o bafo humano e que devemos fazer tudo para lutar por isso.
Publicado in Expresso