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Fernando Fernandes (1934-2018)

Fernando Fernandes (1934-2018)

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CHAMARAM-LHE “o Sr. Livro”, “o poeta do livro”, e Agustina Bessa-Luís considerou-o mesmo “o maior dos livreiros de Portugal”. Mário Cláudio não tem dúvidas de que ele foi “o último grande livreiro da cidade do Porto” – Fernando Fernandes morreu na manhã deste domingo na sua casa no Porto, aos 84 anos. Desapareceu duas décadas depois de se ter reformado e abandonado a direcção da Livraria Leitura, que durante quase meio século foi paragem obrigatória para quem queria colocar-se a par da actividade editorial nacional e não só, principalmente nas áreas da literatura, da arte, do cinema, do teatro, da arquitectura, da filosofia ou da história.

A derradeira homenagem a Fernando Fernandes pôde ser prestada esta segunda-feira no Palacete dos Viscondes de Balsemão, mas sem a realização de qualquer cerimónia fúnebre, já que o livreiro decidira doar o seu corpo ao Instituto de Anatomia Patológica da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.

A Livraria Leitura já não “mora” na esquina das ruas de Ceuta e de José Falcão, no centro histórico do Porto. Mas sucessivas gerações de portuenses e visitantes recordarão certamente que ali existiram duas casas – a Divulgação, primeiro; a Leitura, a seguir – que ajudaram a abrir horizontes para muito do que se publicava, pintava ou acontecia na cena cultural mundial, principalmente nos anos cinzentos do Estado Novo.

“Fernando Fernandes foi particularmente importante numa altura, o tempo da censura salazarista, em que a leitura e o convívio com os livros não era nada fácil”, salienta Mário Cláudio, que classifica a Leitura como “um alfobre de grandes descobertas”.

Essas descobertas aconteceram, primeiro, na Divulgação, fundada em 1958 e instalada na Rua de Ceuta para ser a sede portuense de um núcleo de intelectuais ligados a uma associação nascida no Alentejo e responsável pelo jornal A Paisagem. Nesse grupo pontuavam figuras como José Augusto Seabra, Vítor Alegria, o actor João Guedes ou o crítico de teatro Carlos Porto, que decidiram ir buscar à vizinha Livraria Aviz um jovem para gerir o novo espaço: Fernando Fernandes.

Uma década depois, a Divulgação passou a ser a Leitura, e tanto na primeira como nesta segunda vida tornou-se um lugar incontornável para quem quisesse actualizar-se com o mundo editorial. Além do comércio livreiro – e Fernando Fernandes não recusava a sua montra a uma edição de autor de um jovem poeta, porque não queria arriscar-se “a recusar um José Régio, que também publicou o seu primeiro livro a expensas próprias”, como disse em entrevista ao PÚBLICO, quando se reformou –, a Leitura promovia encontros com escritores e artistas e as suas pioneiras sessões de autógrafos eram célebres, com filas que por vezes se prolongavam rua abaixo.

Para o registo da história da Divulgação/Leitura – que foi passada a livro pelo editor José da Cruz Santos, numa publicação Campo das Letras, em 1999, quando a Câmara do Porto homenageou Fernando Fernandes com a Medalha de Ouro da Cidade – ficaram encontros com figuras como Aquilino Ribeiro (“pouco tempo antes da sua morte em 1963”, recorda Mário Cláudio), José Régio, José Rodrigues Miguéis, Óscar Lopes, José Cardoso Pires, Jorge Amado e outros.

Livros e artes

“Fernandes era um inovador e sempre teve uma intuição muito rara para as coisas da cultura”, diz Germano Silva, realçando a atenção que ele sempre deu também às artes plásticas. Ainda na década de 60, alugou um novo espaço na Rua de 31 de Janeiro, que passou a funcionar como galeria de arte. Armando Alves foi, com Júlio Resende e Amândio Silva, responsável pela programação desse espaço onde regularmente se realizavam exposições – como depois aconteceu, também, com filiais em Lisboa e em Viana do Castelo. “Eu acompanhei todos os movimentos da criação da Divulgação e da Leitura, que era o espaço da intelectualidade da época”, nota Armando Alves, que, além disso, se tornou amigo pessoal de Fernandes, com quem jogava ténis, inclusivamente em competições oficiais.

O pintor alentejano radicado no Porto cita duas exposições que tiveram grande impacto: logo em 1959, a primeira mostra de trabalhos do seu colega da Escola de Belas Artes Ângelo de Sousa, em parceria com o consagrado Almada Negreiros; e, já na década de 60, por altura do Natal, uma montra com cartões de Boas-Festas do próprio Armando Alves e de António Quadros. “Foi um verdadeiro sucesso!”, lembra.

Amadeo de Souza-Cardoso, Maria Helena Vieira da Silva, Júlio Resende, Nadir Afronso e Nikias Skapinakis foram outros artistas que mostraram trabalhos nesses espaços.

Reforma premonitória

No final de 1998, Fernando Fernandes vendeu a sua quota na Leitura ao seu sócio-fundador Carvalho Branco e retirou-se para sua casa, numa reforma de algum modo prematura. “Além de a idade avançar e de as capacidades logicamente irem diminuindo, aumentavam os problemas, as burocracias, a papelada”, justificou na altura.

Apesar do optimismo com que ainda encarava o futuro do livro e da sua Leitura, Fernandes aceitava que os tempos estavam a mudar, e que o livro, fatalmente, teria de se “associar ao multimédia, à Internet, a toda essa panóplia de novas tecnologias”. Não imaginaria, contudo, que o impacto negativo dessas alterações ultrapassaria rapidamente os seus piores receios: em 2005, a livraria foi adquirida pelo grupo Civilização e passou a chamar-se Leitura Books & Living; e em Janeiro do corrente ano, fechou definitivamente as portas, sucumbindo ao ar dos tempos.

Por essa razão, Mário Cláudio diz que Fernando Fernandes “foi o último grande livreiro do Porto”, que se distinguia por “uma personalidade sempre muito discreta, extremamente culto, com um afecto enorme pelos livros e pela leitura”. “O drama é que não deixa continuadores”, lamenta o autor de A Alma Vagueante (uma reunião de crónicas que contempla também a figura de Fernando Fernandes), acrescentando que “também já não há livrarias e, nos sítios onde se vendem livros, a impessoalidade entre o comprador e o vendedor tornou-se diária”.

Não era assim com Fernando Fernandes, que, primeiro do que tudo, era um grande leitor.

Por Sérgio C. Andrade publicado in PÚBLICO

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