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Fernando Guedes (1930-2018)

Fernando Guedes (1930-2018)

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SE havia um momento nas rotinas de Fernando Guedes que lhe davam especial prazer era quando passava pelas salas de provas, quando tinha de caminhar pela imensidão das vinhas da Sogrape, quando se sentava numa mesa com copos, garrafas, enólogos, amigos e familiares. O vinho sempre foi a sua paixão e por sorte e mérito, ele usou-a para criar um gigante empresarial. Adegas como a da Quinta do Cavarnelho, perto de Vila Real, onde durante décadas se fez o Mateus Rosé, eram os seus “primeiros amores” e cada grande vinho que a empresa produzia tornava-se como que um degrau que erguia o seu destino e dava sentido ao caminho iniciado pelo pai em 1942. Fernando Guedes morreu nesta quarta-feira no Porto (o seu funeral é quinta-feira, às 15h00, com partida da Igreja do Foco). Tinha 87 anos feitos em Dezembro. Não deixou à família e ao país apenas a sua maior e mais importante empresa de vinhos, que vende mais de duas garrafas por segundo em todo o mundo e factura mais de 215 milhões de euros com operações em três continentes: deixou também uma forma de estar. Que orgulhosamente revelava através de um vinho produzido em sua homenagem numa vinha velhíssima do Douro: o Legado.

Filho mais velho de uma família ligada ao vinho e aos círculos da alta burguesia portuense, Fernando Guedes nasceu na Quinta da Aveleda, hoje propriedade de outro ramo da família, em 1930. Doze anos mais tarde, o seu pai, Fernando Van Zeller Guedes iniciaria um negócio que mudaria a história da família e do vinho português. Depois de 20 anos a trabalhar na Martinez Gassiot, uma empresa de vinho do Porto, Fernando reuniu 16 amigos em torno de uma mesa que juntaram 625 contos para criar a Sogrape. Na verdade, nunca gostara do negócio do vinho do Porto e, com a ajuda de um enólogo francês, Eugène Hellis, tinha na mente um projecto mirabolante para criar um rosé, frutado e leve, metido numa garrafa que fazia lembrar um cantil da tropa. O Mateus Rosé nasceria logo a seguir, no auge da II Guerra Mundial. Ainda hoje é a principal marca portuguesa no mundo.

Fernando Guedes seguiria o percurso convencional dos rapazes da elite portuense (com uma passagem obrigatória pelo colégio jesuíta das Caldinhas, em Santo Tirso). Quando chega o momento de entrar na universidade, tenta a sorte na Faculdade de Economia de Lisboa. Não correu bem. Em 1952 pede ao pai para trabalhar na Sogrape e o pai faz-lhe a vontade: “Fui trabalhar como aprendiz de tanoeiro”, recordaria mais tarde. Mas por pouco tempo – três anos apenas. Com a Sogrape a crescer a grande velocidade, Fernando Van Zeller Guedes tinha outras ambições para o seu filho e enviou-o para Dijon, onde se diplomou em enologia – foi um dos três primeiros portugueses a licenciar-se nesta disciplina.

Na rigidez e na austeridade dos valores do capitalismo portuense, Fernando tinha de fazer pela vida para singrar na empresa “As pessoas da família devem exercer funções pelos seus méritos e não por herança”, diria mais tarde, numa receita que aplicaria aos seus filhos. Para sua sorte, havia muito por onde mostrar competência. Em 1957, Fernando torna-se director-geral da produção. O Mateus Rosé crescia a um ritmo vertiginoso. Nos anos de 1960, tornara-se um ícone mundial, seja nas mochilas das tropas americanas na Guerra do Vietname, seja nas mesas de estrelas pop como Elton John ou em momentos associados à cultura hippie – como numa foto de Jimmy Hendrix bebendo Mateus Rosé pelo gargalo com uma rapariga loura ao seu colo. Nos anos de 1970, a Sogrape vendia por ano mais de 50 milhões de garrafas de Mateus Rosé em todo o mundo.

Em 1969 Fernando Van Zeller Guedes tomara a decisão de se reformar. Fernando Guedes, que até então acompanhara a produção, dera uma espreitada nos mercados e seguira de perto os investimentos em novas adegas da Sogrape (as empreitadas sempre o atraíram), sobe à administração. Mais devotado ao vinho do que ao marketing ou ao departamento comercial, Fernando não muda, porém, o legado do pai. Artur Santos Silva conheceu-o por esta altura, quando trabalhava no BPA e a Sogrape se tinha tornado “numa das maiores exportadoras, um cliente desejado por toda a gente”. Recorda-se de ter “ficado muito impressionado com a sua energia”. Fernando Guedes mantinha a aposta no Mateus, “mas procurava também investir na produção de vinho de qualidade”. Na calha estava o nascimento da Vinícola do Vale do Dão, que produziria o famoso Dão Pipas.

Não era apenas a dinâmica empresarial da Sogrape que causava admiração na banca ou nos pares dos negócios portuenses da época. “O ambiente que se vivia na empresa surpreendeu-me”, recorda Artur Santos Silva. “Toda a gente era bem tratada. Sentia-se um espírito de família. Havia até um espaço na Avenida da Boavista onde os reformados se encontravam”, invoca o fundador do BPI. Esse ambiente, acrescenta, foi fundamental para que a Sogrape passasse incólume a tempestade das nacionalizações que se seguiu ao 25 de Abril. Os trabalhadores permaneceram ao lado da administração contra as ingerências sindicais.

Com o Mateus sempre de vento em popa, a Sogrape torna-se uma estrela mundial do sector dos vinhos, começa a ser cobiçada e o pacto entre os accionistas treme. No começo dos anos 80, havia quem quisesse vender a companhia à multinacional Whitbread. O Governo de Francisco Sá Carneiro intervém e declara a Sogrape um activo estratégico do país. O consenso reestabelece-se. Os três ramos familiares que controlavam a Sogrape (os Guedes, maioritários, os Carmo e os Gastão da Silva) permanecem unidos. A estabilização do país e a entrada na CEE inspiram novos voos. A histórica A. A. Ferreira estava à venda e Fernando Guedes decide ir a jogo. “Era uma oportunidade para entrar no negócio do vinho do Porto e ficar com marcas de qualidade superior, como o Barca Velha ou o Reserva Especial”, recorda Artur Santos Silva.

Numa concorrência directa com a Sandeman e a Cockburn´s, duas multinacionais, a Sogrape ganhou. Francisco Olazabal, administrador e accionista da Ferreira, dirigiu a operação de venda dos herdeiros da Ferreirinha, foi convidado a permanecer na equipa e recorda com gratidão a forma como Fernando Guedes integrou a empresa familiar na já colossal Sogrape. “Fez-se tudo com muito respeito pelas pessoas e pela identidade da empresa”, nota Olazabal. O gestor ficaria na Sogrape durante 11 anos, assumindo cargos de administração, e a experiência deixou-lhe “óptimas recordações”. Fernando Guedes “era uma pessoa de grandes qualidades pessoais e humanas, tinha um excelente coração”. Nos últimos anos, sempre que visitava a Ferreira, Fernando Guedes ocupava um gabinete com uma magnífica vista para a Ribeira do Porto que outrora fora de Olazabal. “Mas sempre que eu o visitava ele levantava-se e dizia-me: ‘Sente-se que o lugar é seu’. Isto diz muito sobre a sua sensibilidade”, nota Francisco Olazabal, que em 1998 deixou a Sogrape para lançar o seu projecto pessoal de vinhos na Quinta do Vale Meão.

A abertura a Europa foi um período de euforia para os empresários nortenhos e Fernando Guedes não lhe escapou. Em 1981 torna-se accionista da Sociedade Portuguesa de Investimentos, o embrião do futuro BPI. Esteve sempre ao lado de Artur Santos Silva nas duras batalhas pela posse do Banco Comércio e Indústria ou nas disputas que o banco emergente teve de travar. “Em todos os passos foi sempre um homem de carácter íntegro, de uma lealdade exemplar, de uma palavra de ouro. Nunca houve uma surpresa na palavra dele”, diz Artur Santos Silva. Mais tarde, a Sogrape integra o núcleo duro da Viacer (com a família Violas e a Arsopi) que vence a privatização da Unicer, em 1989 e 1990. E a diversificação, em moda na economia empresarial dos anos de 1990, chega ao imobiliário.

Em breve, porém, a Sogrape treme com a dispersão e com o esforço financeiro feito na compra da Quinta dos Carvalhais, no Dão, em 1988, e da enorme Herdade do Peso, no Alentejo, no ano seguinte. Era necessário repensar tudo de novo e estabelecer prioridades. Fernando Guedes, porém, não tem dúvidas do caminho que deve seguir: vender tudo e dedicar-se ao negócio que conhece, que domina e no qual acredita: o vinho. Na segunda metade dos anos de 1990 a empresa volta a assumir a sua condição de liderança no sector português do vinho.

Fernando Guedes tinha trunfos para acreditar no regresso à essência da Sogrape: reunia a visão ousada do pai, a sua experiência como gestor e um conhecimento íntimo do produto. “Ele evoluiu de enólogo para empresário”, diz José Maria Soares Franco, enólogo da casa Ferreira durante 18 anos, o que lhe permitia ter uma visão transversal do negócio. Mas nessa visão havia a sabedoria e sensatez próprias de quem “sabe que não pode fazer tudo sozinho”. No seu dia-a-dia, “ele reunia com as equipas, confiava nas pessoas e sabia dialogar, tudo sinais de inteligência e bom senso”, diz José Maria Soares Franco. Ainda hoje a Sogrape reúne uma equipa de enólogos e de gestores de classe internacional. Sob a sua égide, a retracção dos mercados mundiais do Mateus foi compensada pelo lançamento de marcas de sucesso como a Planalto ou a Esteva, ambas da Ferreirinha. Os Barca Velha reforçam o estatuto de vinho icónico do país. E, com o músculo financeiro da alienação da Unicer e da participação de 4% no BPI, havia liquidez para outros voos.

A segunda metade dos anos 90 foi auspiciosa. Fernando Guedes tem já ao seu lado o filho Salvador para desenhar novas fronteiras para a empresa. Uma vaga de aquisições e de investimentos está em curso. Em 1995 a Sogrape compra a Offley Forrester. Tenta, sem sucesso, controlar a Aveleda, dos primos. Em 2001, o gigante do vinho do Porto Sandeman passa para mãos portuguesas. Motivado pela energia da nova geração, Fernando Guedes convence-se que Portugal é um país demasiado pequeno para as ambições da Sogrape. Sob a égide da terceira geração da família, a Sogrape aventura-se além-mar. Na Argentina adquire a Finca Flichman, em 1997; na Nova Zelândia compra a Framingham, em 2007; no Chile assume o controlo, no ano seguinte, de Los Bodos; na Espanha compra a LAN, em 2012 e, já este ano, a Bodegas Aura. O mercado nacional vale hoje um quarto dos negócios da Sogrape, talvez a maior empresa multinacional de capital português.

Todos estes movimentos foram feitos numa altura em que Salvador Guedes comandava as operações e Fernando Guedes se remetia ao conforto de saber que as novas gerações da família podiam fazer o que ele fez: reforçar o legado. Podia por isso gozar a sua reforma, um gozo que contemplava idas diárias a adegas, a vinhas ou às salas da administração. Podia confessar: “Faço hoje um balanço positivo da minha vida. Desde logo sob o ponto de vista familiar, pelo respeito, pela amizade e pela educação que eu e minha mulher conseguimos transmitir aos nossos filhos”. Salvador era o exemplo dessa cultura e educação e, mesmo mantendo a cultura básica da empresa, mudou o perfil da Sogrape introduzindo-lhe cosmopolitismo e sofisticação até que uma Esclerose Lateral Amiotrófica lhe travou a carreira. Em 2015, é o irmão Fernando que, depois de uma carreira na banca, o substitui, com a promessa de manter o legado do avô, do pai e do irmão sem deixar de introduzir na gestão uma maior focagem em marcas líderes. A quarta geração está, entretanto, a crescer no seio da empresa. Mafalda, filha de Salvador, estudou gestão e enologia e a sua entrada na Sogrape foi uma nova felicidade para Fernando Guedes. “Tenho imenso gosto em ver a nova geração interessada na Sogrape. A Mafalda está cá a fazer o que faz porque quer”, dizia Fernando Guedes ao PÚBLICO, em 2012. Se “legado é continuação”, Mafalda dispõe-se a garanti-la.

Eleito pela imprensa especializada como o grande Senhor do Vinho português, admirado pelos seus pares como uma “figura de grande relevância e um dos maiores empresários portugueses das últimas décadas”, como reconhece uma nota da Associação Empresarial de Portugal, Fernando Guedes encarava os negócios como um assunto de cavalheiros, impregnado de uma ambição que não dispensa a tradição, os valores, a lealdade ou a paixão. “Costumo dizer que os accionistas a quem só o dividendo interessa não se sentirão muito bem na Sogrape. Porque a nossa aposta na criação de valor visa, acima de tudo, fazer crescer o negócio e valorizar o património humano. Sempre fomos assim: é uma questão de educação e de cultura”, notava. Esta quarta-feira, Portugal perdeu uma das suas referências.

Por Manuel Carvalho, publicado in PÚBLICO

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