QUANDO nos damos conta, é sempre demasiado tarde. Adiamos a carta, a mensagem, o telefonema, o encontro, hoje, amanhã, depois de amanhã, uma e outra vez. Por pudor, por incúria, por preguiça, por pura cobardia. Há mil razões para adiar um encontro e todas estão erradas. Não há desculpa. E, no entanto, deixamos o tempo construir a sua diabólica obra. A negra e lenta teia. E assobiamos para o lado, ou melhor, para dentro. Eu devia ter ligado ao Luís Mourão. Devia ter escrito. Devia ter ido ao seu encontro. Agora é demasiado tarde. Restam as palavras e os livros, e é tão pouco. Resta-me a memória de alguns encontros, tão poucos, mas sempre inesquecíveis, a pretexto dos livros.
Era um prazer ouvir o Luís Mourão falar dos livros e dos autores que lhe interessavam. Como os grandes mestres, tinha desenvolvido uma espécie de exercício de encantamento para seduzir o auditório. Do fundo de um bolso, retirava a chave e apresentava-a com prazer ao público. Depois, com um gesto largo e lento abria o texto, e o milagre desenrolava-se diante dos nossos olhos, como se assistíssemos a um filme. O momento raro em que a literatura se solta das páginas e ganha cor e música, osso e músculo. E é tudo ficção. Quer dizer, é tudo verdade.
O Luís amava apaixonadamente os seus autores: Raúl Brandão, Carlos de Oliveira, Agustina Bessa-Luís, Augusto Abelaira, Maria Velho da Costa e, acima de tudo, Vergílio Ferreira. O Luís Mourão acrescentava facilmente uns centímetros à estatura de cada um. E não era apenas uma questão de generosidade. Tratava-se antes de verdadeira paixão. A paixão verdadeira e grega, de que falava o Herberto, e que, no caso do Luís, exigia ser partilhada.
Escreveu livros a duas, três, quatro mãos, apresentou autores a editores e editores a autores, participou em revistas, apoiou causas, organizou encontros, concebeu teses e orientou outras, e manteve o blogue Manchas, entre 2006 e 2013, onde publicou centenas de pequenas notas sobre literatura, cinema, música, breves iluminações sobre aspectos do quotidiano, e aforismos, alguns dos mais belos que se podem ler na blogosfera.
O último post, datado de 10 de Março de 2013, é um excerto de um poema de Spoon River, do Edgar Lee Masters. Os derradeiros cinco versos do texto dedicado a Walter Simmons, o relojoeiro da cidade, que também tocava trombeta, pintava quadros, modelava em barro e que sonhava com a construção de um motor que nunca funcionou: «Algumas almas benévolas pensavam que o meu génio/ fora de algum modo prejudicado pela loja./ Mas não era verdade./ A verdade era só esta:/ eu não tinha inteligência que chegasse.» A sua última reunião de ensaios, de 2003, intitula-se Sei que já não, e todavia ainda. E no cabeçalho do seu último post, que é a primeira frase que salta quando se acede ao blogue, lê-se apenas: «Isto dito, continuar.» Não há alternativa, pois não? Não há outra maneira de acabar, senão continuar.