NEM duas décadas em Portugal lhe retiraram a curiosidade de ser um cidadão bósnio no Porto. Os solavancos linguísticos, compensava-os com expressões próprias, que, para quem com ele contactava regularmente, se tornavam indissociáveis da pessoa, quer enquanto amigo, professor ou colega.
Disponível em permanência para discussões sobre política, era o carisma o que o distinguia. Ora apelidava jornalistas como “cervejeiros” e um aceno de mão, ora classificava determinados comentadores como “bonitão”, havendo em ocasiões quem desse e levasse “porrada” no panorama das relações internacionais.
Milan Rados chegou a Portugal em 1992, 41 anos depois de nascer na Bósnia-Herzegovina, de onde saiu com o arranque das hostilidades na então unida Jugoslávia e onde deixou a família. Homem de paixões e emoções, falava com saudades da terra onde nasceu e com uma ternura imensa do filho distante.
Formado em língua servo-croata (da qual veio a compor um dicionário para português com o apoio do Instituto Camões) e literatura jugoslava em 1974 pela Universidade de Belgrado, arrancou de seguida para o jornalismo, profissão que abandonou já em Portugal depois da passagem “não muito feliz” pel’”O Primeiro de Janeiro”, como a descreveu numa entrevista dada ao Expresso e publicada menos de um mês antes de morrer.
Antes de abandonar os Balcãs teve oportunidade de completar o mestrado em Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade de Zagreb, área na qual se veio a doutorar a 22 de Março de 1999 pela Universidade do Minho com a tese intitulada “A política da União Europeia face ao conflito na ex-Jugoslávia”.
Professor universitário em diversas instituições do Porto, é recordado pelos alunos como uma figura inesquecível. A maior parte dos jornalistas formados em escolas da cidade nos últimos 15 anos conhecem o seu nome. Cada qual com a sua história. Tão rapidamente empurrava uma temática para um canto, como abordava da forma mais séria o assunto seguinte.
Apostou na queda de determinado Governo português e, face à derrota, não se coibiu de pagar o almoço devido a 2 estudantes que apostaram o contrário. Não seria surpreendente encontrar a sua figura infatigável em jantares de final de ano. Chegou a responder a convites por e-mail da forma mais singela e desarmante possível: “Olá Tiago, não posso faltar ao nosso jantar”. O jantar era um jantar de final de curso para um grupo de pessoas que seguiriam o seu rumo para fora da universidade, mas a simplicidade do pronome possessivo revelava o sentimento em causa. Era o nosso jantar. Dele e de todos.
Milan Rados Radenovic morreu aos 61 anos, vítima de cancro, no sábado passado na Corunha, Espanha.
Por Tiago Dias in http://porto24.pt/
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Milan Rados, uma memória
Começou assim: eu tinha lido uma entrevista dele sobre a Jugoslávia no diário La Voz de Galicia e pensei: Com um raio!? Como é que este tipo dá aulas no Porto e eu só sei da existência dele através de um jornal espanhol? Milan Rados atendeu o telefone com maus modos. Ele não estava para dar entrevistas a jornalistas portugueses sobre a situação na Jugoslávia sem que, pelo menos, houvesse uma conversa prévia para ele saber o que é que o jornalista sabia sobre o conflito. «Sabe, é que eu encontro mais cervejeiros do que jornalistas», explicou, curto e grosso. Foi um trabalho estafado. Do diálogo ao telefone seguiu-se a tal «conversa prévia», ao vivo e a cores. Não se iludam: eu acompanhava razoavelmente a «Guerra na Jugoslávia», mas achei-me descalço e, antes do nosso encontro, lá fui aprofundar saberes para casa, não fosse o senhor Rados apanhar-me em falta. A primeira meia-hora foi um combate de boxe. Ou quase. Mas depois ele lá aceitou dar a entrevista e contar algumas coisas mais sobre a sua pessoa. Conheci um homem de feitio complicado, mas fascinante e até comovedor. O resultado dessa conversa, de horas, foi publicado na revista d´O Independente, a 7 de Julho de 1999, que podem ler no link abaixo, pedindo eu que desculpem qualquer coisinha, pois já lá vão uns anos. Soube ontem do falecimento de Milan Rados, com quem falei algumas vezes depois da nossa «célebre» conversa. Li o seu livro sobre a Jugoslávia com interesse e admiração e chegámos a conversar sobre a possibilidade de outra entrevista, já na Visão, que, infelizmente, não se concretizou, por culpa dos afazeres de ambos. Digo-vos: já tenho saudades dele. (a foto é do Egídio Santos, tirada precisamente para a entrevista).
Por Miguel Carvalho in http://adevidacomedia.wordpress.com/