LEMBRAM-SE do papel selado? Daquelas folhas azuis, pautadas, com o selo na parte superior e que era de uso obrigatório para requerimentos, exposições, petições, etc? O que muita gente não deve saber é que o uso desse tipo de papel oficial, digamos assim, entretanto desaparecido, remonta ao século XVII, ao tempo do rei D. Afonso VI e que a introdução do seu uso obrigatório no Porto deu origem a uma curiosa revolta, que passou à história com o nome de “Revolta do papel selado”.
Tudo aconteceu no dia 4 de maio de 1661, quando a esta cidade chegou a ordem régia em que se ordenava que a partir daquela data os oficias da justiça só podiam lavrar despachos forenses, de qualquer tipo, fossem de negócios ou de causas, em papel selado.
O povo do Porto não gostou de ser tributado com mais esta imposição e protestou. Pacificamente, de início. Procuradores do povo, em representação de vários ofícios, assim como artesãos e feirantes, dirigiram-se à Câmara, que funcionava naquele edifício quinhentista de que ainda existem vestígios à entrada da Rua de S. Sebastião, e solicitaram aos vereadores eleitos que instassem junto do rei para que anulasse a decisão de aplicar mais aquele tributo ao povo.
Não se sabe bem o que é que se passou no interior do edifício. Mas cá fora, à rua, onde se havia juntado muita gente que apoiava a petição dos procuradores do povo e dos ofícios, chegou a notícia de que a Câmara não só não iria pedir o que quer que fosse ao rei, como queria obrigar os procuradores a assinar um documento em que se comprometiam a respeitar a ordem do rei. Os representantes do povo recusaram assinar fosse o que fosse e a Câmara deu-lhes ordem de prisão.
Entretanto, alguém, do interior do edifício, fechou a porta da Câmara, que até aí havia estado escancarada. Foi a prova de que ficavam mesmo presos os procuradores do povo. E o motim rebentou logo ali.
Aos gritos de “abram a porta” e de “soltem os procuradores do povo”, os amotinados, que eram já umas centenas, muniram-se de machados com os quais, num ápice, fizeram voar a porta em estilhas. Entraram no edifício, libertaram os procuradores e, com eles à frente da multidão, internaram-se no populoso bairro da Sé.
Pelas ruas Escura, do Souto e da Bainharia, passaram rapidamente ao Largo da Penaventosa, desceram por S. Crispim e chegaram ao Largo de S. Domingos, onde morava o tesoureiro da cidade, que, transido de medo e sobraçando resmas e resmas de papel selado, apareceu a uma janela arremessando todo o papel para a rua.
Do meio da multidão, ainda houve quem gritasse “queime-se a casa” e logo alguém foi à procura de carqueja. Prevaleceu no entanto o bom senso. Dois frades do Mosteiro de S. Domingos, que ficava ali ao lado, intervieram com palavras apaziguadoras junto da turba enfurecida e o perigo de incêndio passou.
O que não passou foi a ira dos revoltosos que, descendo as Congostas, se dirigiram à então chamada Rua Nova, hoje Rua do Infante D. Henrique, onde vivia Ascenso Dias, recoveiro, responsável pela distribuição do papel selado. Aos gritos de “viva o rei, morram os traidores, abaixo o papel selado”, a multidão arrombou-lhe a porta, entrou na casa, trouxe todo o papel selado que lá encontrou, fez com ele um auto de fé e chegou o fogo à casa do pobre recoveiro.
Da Rua Nova, os amotinados subiram pelas Congostas à Ponte de S. Domingos e internaram-se na Rua das Flores, dirigindo-se diretamente para a casa de Gaspar Abreu, juiz da Alfândega, sobre quem pendia a acusação de ser o “autor da obra”. São arremessadas pedras contra as vidraças das janelas, também aqui se arromba a porta e aos gritos de “morra o traidor! morra o traidor”, entram de roldão na casa, mas o morador, previamente avisado, fugira a tempo. Do interior, consta de uma crónica do tempo, “voaram para a rua cadeiras, bufetes, escritórios, e, com o mais que (os revoltosos) acharam, tudo veio das janelas abaixo”.
Faltava ainda “visitar” o governador da Relação e com essa intenção se dirigiram os sublevados na direção do Largo de S. Bento das Freiras. É então que acontece o inesperado; ao chegar junto do convento das beneditinas, onde agora está a estação ferroviária de S. Bento, a multidão enfurecida e em permanente gritaria, estacou de súbito. E logo a seguir, inesperadamente, retrocedeu, pela Rua das Flores, cabisbaixa, de cabeça descoberta. Que milagre teria acontecido?
O milagre operara-se com o aparecimento súbito do Santíssimo Sacramento, que alguns cónegos da Sé tinham ido buscar à catedral e transportavam numa rica custódia de cristal e ouro. À vista do Santíssimo, a multidão enfurecida amansou, abriu alas, os homens descobriram-se, toda a gente dobrou o joelho à passagem da custódia.
E as coisas ficaram por aí? É claro que não. Quatro meses depois destes acontecimentos, escoltados por 4000 soldados de infantaria, entraram no Porto os condes do Prado e de S. João, governadores do Minho, a fim de procederem a uma devassa sobre os acontecimentos de 4 de maio.
Por Germano Silva publicado in Jornal de Notícias de 17 de dezembro de 2017, página 30.
Boa tarde, gostava de deixar uma pequena correção que considero importante. O imposto do papel selado foi decretado por D. João IV e instituído pela regente D Luísa de Gusmão após a morte do monarca. Não foi D. Afonso VI que o decretou.