HOJE aterrou esta ideia na minha cabeça: neste momento, somos todos cactos, iucas e agaves. E aloés, e suculentas, talvez.
Porquê?
Porque não nos é permitido apertar as mãos. Nem abraçar. Nem beijar. Estamos num deserto táctil causado por um bicho invisível e temos que manter a distância para bem de todos.

Fila de entrada para o Pingo Doce.
Uma mulher-iuca – com canadianas – discute com um segurança-cacto que deve entrar antes dos restantes que já estão na fila há algum tempo. As pessoas-cactos respeitam a distância aconselhada. O segurança-cacto informa-a que deve apresentar uma declaração/comprovativo em como tem efectivamente uma incapacidade motora igual ou superior a 25% (ou algo assim). É gerada a confusão. A senhora-iuca de canadianas atira-se dramaticamente (em semi câmara-lenta) ao chão. O segurança-cacto fica visivelmente constrangido. As pessoas-cacto não sabem o que fazer. Ninguém sai do sítio. Prometi a mim mesmo não usar o caracterizador “kafkiano” nesta história. Um senhor-agave (o seu nome é Gastão, vim a saber mais tarde) ameaça chamar uma ambulância para a senhora-iuca prostrada no chão. A senhora-iuca põe-se de pé e diz que já não é preciso. Vai-se embora a ameaçar o segurança e o PD. “Isto não fica assim”. A ordem é lentamente restabelecida. Repito, não vou usar o adjectitvo “kafkiano”.

O meu filho de 3 anos já sabe abraçar árvores. Já sabe dar um “chi” (na verdade, passa-se exactamente o oposto: é a árvore que lhe transmite o chi que o acalma de alguma forma, mas isso não interessa agora). Está a ser difícil desensiná-lo a não abraçar amigos ou familiares que não vivem connosco.

A senhora-iuca de canadianas – podemos reprovar a sua conduta, censurá-la, atirar a primeira pedra – estava a precisar de um abraço. Um simples abraço e tudo ficaria resolvido no mundo dos homens-cacto e das mulheres-suculentas. Era necessário um pequeno oásis afectivo ali à entrada do Pingo Doce.

E para terminar, deixo ao vosso critério a pontuação mais adequada para esta frase:

Esta travessia no deserto é mesmo necessária

(ponto final, ponto de exclamação ou ponto de interrogação?)

Pedro Amaral, natural do Porto, nasceu em 1974. É tradutor freelancer. É autor do blogue Pedro e o Lobo. Iniciou a sua colaboração com o Correio do Porto em 2016. Texto publicado in Pedro e o Lobo

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