DEPOIS do colégio (que fica lá em cima, no pequeno planalto do Candal, onde as pessoas nos olham de cima para baixo), regressava à casa pela rua das Costeiras, sempre a correr e aos pinotes, os paralelos estão sempre soltos e a rua está cheia de buracos. Ia para casa dos meus avós esperar pela minha mãe que regressava do trabalho. Primeiro sentava-me no enorme degrau da entrada. E depois fechava a porta e estendia-me no corredor da entrada. Foi aqui que aprendi a esperar.

Bastava olhar para a minha avó que mo ensinava sem o saber. Ela estava sentada num velho mocho (um pequeno banco casmurro que não deixava ninguém sentar-se em cima dele excepto a dona, a minha avó; o velho mocho era traiçoeiro, estrebuchava como um touro e atirava as pessoas ao chão), encostava-se à porta que dividia o corredor e a cozinha e fechava os olhos como se estivesse a sentir o respirar da casa que tinha mais anos do que ela. Não acendia as luzes enquanto não estivesse completamente escuro lá fora. O dia escurecia e só conseguia ver uma sombra à entrada da cozinha. O tempo então abrandava.

Enquanto esperava, esticava-me no soalho carunchoso do corredor da entrada e passava os dedos pelas tábuas carcomidas, gosto de sentir os nervos da madeira velha. O cheiro a humidade tapava-me como um cobertor e eu fechava então os olhos. Na minha cabeça, as fendas do soalho eram desfiladeiros e os buracos eram crateras. Havia ainda pequenos montinhos de um pó amarelo muito fino que nasciam de um dia para o outro sobre as tábuas. A minha avó dizia-me para não mexer nesses montinhos que era remédio para as moscas. Eram as minhas pirâmides do Egipto em miniatura. Ainda deitado, abria os olhos até me doerem, rebolava-os sem piscar, tentava furar aquela penumbra e via o vulto de um gigante em repouso, a minha avó. Quando estava mesmo escuro, nunca sabia se ela tinha os olhos abertos ou fechados, e isso causa-me impressão, ela podia estar a vigiar-me sem eu o saber, envolvia-me o corpo com o seu olhar demorado e triste e apertava-mo como se fosse uma cobra pitão, tinha de desviar o olhar para voltar a respirar. Conseguia ouvir o seu respirar pesado e cansado que me fazia lembrar sempre um vento forte e teimoso a ser cortado pelos cabos da luz e que era interrompido por terríveis ataques de tosse cheios de expectoração. Às vezes fazia suspiros roucos, “atacados”, mas eu não tinha coragem para me levantar e reconfortá-la, não sei porquê, deixava-me estar ali deitado, à espera.

Conseguia distinguir os seus dedos ossudos virados para cima como se fossem duas tarântulas de patas para o ar, ouvi-a a tentar puxar as lágrimas para cima, arrependida por aquele momento de fraqueza. Depois, eu virava a cabeça e apreciava pela milésima vez os painéis na parede do corredor que tapavam as rachadelas e a humidade. Eram quadros antigos, de pessoas com roupas estranhas, as mulheres usavam saias de balão e os homens tinham meias brancas até aos joelhos. Tinham todos cabelos brancos, dançavam alegres numa clareira entre ruínas e colunas partidas, com anjinhos com setinhas, flechas e liras, e cães de caça aos pulos. Os painéis eram quadros em cartão, sem moldura, tinham sido oferecidos por um vizinho que é meio-anão e que trabalha numa gráfica. Gosta de conversar com a minha avó à soleira da porta. Fazia sempre uma cara feia quando eu surgia atrás dela, devia ter ciúmes de mim. Andava sempre com uma maleta de pele preta com muitos papéis dentro e parecia que estava sempre com pressa. O meu painel favorito era o das mulheres nuas em que uma delas, para mim a mais bonita, a que estava no meio do quadro, agarrava um grande cisne que lhe tapava o sexo. O cisne e as mulheres eram tão brancos que eram uma espécie de luz envergonhada naquele corredor escuro.

Texto de Pedro Amaral e ilustração de Antonio da Correggio.

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