O FIM do repouso é ditado pelo senhor Alfredo ou Caça-Balões como aqui é conhecido. É o primeiro a sair de casa, anda sempre com uma barba de três dias, arrasta o andar até meio do terreiro do Monte e pára por uns segundos para lançar um olhar estranho sobre a roupa ressequida pendurada na pequena mata de estendais. O Monte está deserto, parece que está à espera que algo aconteça. O Monte é um Grand Canyon em ponto pequeno. O lábio inferior do senhor Caça-Balões tem uma pequena cova de lado para pousar o cigarro, como um cinzeiro. Ele ajeita as calças e monta a sua motorizada estafada, uma Sachs velhinha, que apesar da idade ainda tem forças para ir daqui ao sol e voltar. O senhor Caça-Balões sai de casa já com o capacete posto na cabeça alongada. Uma vez fui a casa dele levar um arranjo de costura à mulher, à Martinha, a mando da minha mãe, e fiquei espantado ao vê-lo com a cabeça desprotegida, estava à espera de o ver de capacete dentro de casa e…parecia outro homem, mais magro ainda, cabelo só nos lados da cabeça, estava de calções sentado no sofá, as veias salientes a contornarem as pernas ossudas, as mãos enormes pousadas sobre os joelhos. Lembro-me que sorriu para mim com os seus olhos cinzentos, tinha umas enormes bolsas debaixo dos olhos que também acompanharam o sorriso, sorriam com o ar mais bondoso do mundo e convidou-me para entrar, “não fiques especado à entrada, entra, entra, o teu pai está bom?”.

O barulho da Sachs do senhor Caça-Balões acorda toda a gente que mora no Monte e arredores, desde a Beira-Rio ao Candal. E então acaba-se o sossego dos sábados de tarde. A velha e caprichosa mota faz “ratéres” estrondosos quando bem lhe apetece, provocando a largada das mulheres e da canalha para a rua, todos a dispararem palavrões e chistes ao mesmo tempo. O senhor Caça-Balões é como aquele flautista alemão que atraiu os ratos e as crianças para fora da cidade, só que no caso dele, apenas as crianças o seguem, com os tímpanos rompidos, aos berros e aos pinotes, enquanto engolem um rasto de fumo preto.

Acredito que as pessoas mais velhas do Monte têm uma roda da sorte dentro da cabeça que as obriga a falar da maneira como falam. As palavras que dizem são sempre as mesmas, só que um dia dizem-nas de uma maneira, outro dia de outra; essas palavras parecem fazer sentido nas suas cabeças e então repetem-nas várias vezes por dia até os mais novos as encaixarem nas respectivas cabeças, mesmo quando não lhes apetece. Acho que à medida que crescemos e amadurecemos, a roda da sorte de palavras que temos dentro da nossa cabeça vai ficando cada vez maior até que chega uma altura em que a roda deixa de crescer e depois, sem darmos conta, é chegada a nossa vez de repetirmos as mesmas palavras que os falecidos diziam, por esta ou aquela ordem. Até que a tal roda da sorte das palavras encrava de vez ou então deixamos de ter forças para girá-la dentro da nossa cabeça e calamo-nos para sempre.

Pedro Amaral, natural do Porto, nasceu em 1974. É tradutor freelancer. É autor do blogue Pedro e o Lobo. Iniciou a sua colaboração com o Correio do Porto em 2016. Texto publicado in Pedro e o Lobo

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