ACABEI por adormecer. No centro do meu sonho, uma dessas mulheres brancas ocupa a praceta da minha fortaleza tomada pelos bárbaros que se uniram contra mim enquanto ainda estava acordado. À medida que respiro, a mulher de pedra cresce, torna-se numa gigante, o seu corpo imenso enche o balão do meu sonho. Os pensamentos-bárbaros já se tinham dispersado, a minha cabeça pertence agora àquela mulher de pedra que era tão alta como a torre do governador que era bastante parecida com a Torre dos Clérigos. Cá em baixo, junto à base da mulher, o meu pai fumava um cigarro. Calças de ganga, camisa preta aberta até ao peito, a outra mão enfaixada numa ligadura. Parecia que estava a posar para uma fotografia. O meu pai é muito vaidoso, até nos sonhos dos outros. A minha mãe está na outra ponta da base, muito inquieta, sempre nervosa, muito menos fotogénica. Os dois não se vêem. Parecem-me mais opostos do que nunca, mais contrários do que o “Sim” e o “Não”. Uma espiral desenrola-se a partir do centro estendendo-se por toda a praça cor de caramelo. Há ladrilhos de várias cores aqui e ali, violeta, azul-marinho, laranja, tinto, não obedecem a nenhum padrão. As casas à volta da praça são antigas e bonitas, com janelas e varandas com roupa a secar. Algumas têm buracos nas paredes que servem de refúgio para as pombas. Numa das ruas que desemboca na praça, há um armazém em ruínas, foi destruído por um incêndio que deflagrou pouco antes da invasão dos pensamentos bárbaros. Como que por milagre, centenas de pastas, cartas e rótulos de garrafas de Vinho do Porto sobreviveram ao fogo, o chão estava forrado com camadas de papelada. Dois soldados mal-amanhados fuçam esses documentos, procuram algo de valor. A enorme da sombra da mulher de pedra cobre completamente a única igreja da fortaleza que é em tudo igual à igreja de Santa Marinha da beira-rio. Uma figura alta e esguia sai disparada pela enorme porta de madeira. É um padre. É cara chapada e chupada do pároco de Santa Marinha e parece confuso: seria obrigado agora a adorar a mulher gigante em vez de se ajoelhar perante a cruz?
O sonho é “meu”, mas não consigo comandar o desenrolar dos acontecimentos. Sou o actor e o espectador do meu próprio sonho. O padre e os outros podem fazer aquilo que lhes apetece, não tenho controlo nenhum sobre o que se passa na minha cabeça quando estou a sonhar. Ele começa a agitar os braços e a rezar cheio de devoção à sua nova deusa. As pedras a seus pés ganham bocas de velhas engelhadas e as orações são sardaniscas vermelhas verdes e prateadas, com chifres, que começam a trepar pelo corpo branco da mulher de pedra. Os mendigos arrastam-se pela praça até chegarem à base da nova deusa e mal tocam na pedra transformam-se em centenas de pardais que levantam voo, escurecendo a praça por alguns segundos.
As lojas fecham. Rebenta um surto de peste e cólera pela cidadela que implora para ser devastada pela doença. As poucas pessoas que ousam pôr os pés na rua carregam um saco preto. Quando se cruzam, pedem ao outro para enfiar a mão no respectivo saco. A mão vem com uma pequena bola que irá ditar o destino da pessoa que carrega o saco preto. Um homem bastante parecido com o senhor Amadeu é conduzido por um pónei-guia que tem um pelo baio comprido, muito luzidio, muito bonito. O meu dentista aproxima-se com um colar feito de próteses dentárias. Pede-lhe para tirar uma bola do seu saquinho preto. O sócia do senhor Amadeu começa a disparar insultos, “Então você não vê que eu sou cego, seu imbecil?”, até o vozeirão de locutor de rádio era parecido com a voz do senhor Amadeu; o meu dentista – que é meio pitosga, mas não é cego – desdobra-se em mil desculpas e oferece-se para lhe tratar dos dentes durante dez meses. Raminhos de hortelã-pimenta brotam entre as fendas das pedras da calçada onde o dentista se encontra e o pónei-guia começa a comer as ervas. Falam como se eu não existisse e, no entanto, vivem todos dentro da minha cabeça. Os meus sonhos são tão espantosos que quando acordo com a minha mãe a chamar-me da cozinha, desperto sempre enclausurado no próprio sonho e isto reproduz-se até ao infinito. A minha vontade não existe quando estou a sonhar, só me resta aceitar esta ilusão tal como ela é.
Pedro Amaral, natural do Porto, nasceu em 1974. É tradutor freelancer. É autor do blogue Pedro e o Lobo. Iniciou a sua colaboração com o Correio do Porto em 2016.