DE POUCAS COISAS
De poucas coisas tenho tanto medo como
das palavras escritas com maiúsculas
onde tudo fica subitamente igual
sem nada que as distinga
e nos leve a dizer
esta faz parte do grito que larguei no cais
esta perdeu-se entre o oxigénio que não te salvou
esta enterrava-se entre a chuva donde me olhavas
esta vou largá-la no momento em que o padre
abandonar as flores que escondem o que foste
de poucas coisas tenho tanto medo como
dos móveis velhos a enterrarem no corredor
a poeira das ruas
que ainda restava do teu corpo
vivo
in Olha-me Como Quem Chove, 2018 →
7.
desenha com a ponta dos teus dedos
as fronteiras exactas do meu rosto
as rugas os sinais a cicatriz que ficou da infância
o lento sulco das lâminas onde no peito
se enterra o mistério do amor
e diz-me
o que de mim amaste noutros corpos
noutras camas noutra pele
prometo que não choro mas repete
as palavras um dia minhas que sem querer
misturaste nas tuas e levaste
com as chaves de casa e os documentos do carro
– e largaste sobre a mesa com o copo de gin a meio
na primeira madrugada em que me esqueceste →
6.
DESENHO
No papel branco
desenharei um Sol
bem amarelo
e no alto dum monte
um enorme castelo
entre campos lavrados
e povoarei a terra
de cavaleiros e de soldados.
Às nuvens darei
a forma de gente
(e haverá quem pense
que são gente a sério…) e ouvir-se-á
pela noite fora
os uivos dos lobos
até vir a aurora
que desfará o medo
e o mistério…
in Rimas Perfeitas, Imperfeitas e Mais-que-Perfeitas
5.
De tudo o que era meu deixo-te o fogo
os resíduos do tempo a ferida gangrenada →
4.
A língua sobre a pele o arrepio
os teus dedos na escada do meu corpo
3.
Aprendemos disciplinadamente a pôr
o tempo no seu lugar →
2.
Entre a saliva e os sonhos há sempre
uma ferida de que não conseguimos regressar →
1.
Às vezes uma palavra bastava
para que eu soubesse que virias sempre ao meu encontro →