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João Cabral de Melo Neto (1920-1999)

João Cabral de Melo Neto (1920-1999)

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7.
Habitar uma língua

J., agora que de regresso
não a teu país, mas à mesma
língua em que te falei
íntimo de cama e mesa,
eis que aprendo, nesta paisagem
da de teus país tão diversa,
que se habita uma língua
como se fala Marselha

in Museu de tudo, Alfaguara, outubro 2009, página 80

6.
Quando por algum motivo
a roda de água se rompe,
outra máquina se escuta:
agora, de dentro do homem;

outra máquina de dentro,
imediata, a reveza,
soando nas veias, no fundo
de poça no corpo, imersa.

Então se sente que o som
da máquina, ora interior,
nada possui de passivo,
de roda de água: é motor;

se descobre nele o afogo
de quem, ao fazer, se esforça,
e que ele, dentro, afinal,
revela vontade própria,

incapaz, agora, dentro,
de ainda disfarçar que nasce
daquela bomba motor
(coração, noutra linguagem)

que, sem nenhum coração,
vive a esgotar, gota a gota,
o que o homem, de reserva,
possa ter na íntima poça.

in “Serial”, in Poesia Completa – 1940-1980, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1986, pp. 197-198.

5.
O alíseo ao chegar ao Nordeste
baixa em coqueirais, canaviais;
causando as folhas laminadas,
se afia em peixeiras, punhais.

4.
No telefone do poeta
desceram vozes sem cabeça
desceu um susto desceu o medo
da morte de neve. 

3.
A bola não é a inimiga
como o touro, numa corrida; 

2.
O jornal dobrado
sobre a mesa simples;
a toalha limpa,
a louça branca 

1.
Sobre o lado ímpar da memória
o anjo da guarda esqueceu
perguntas que não se respondem. 

Nascido no Recife a 6 de janeiro de 1920, João Cabral de Melo Neto viria a falecer a 9 de outubro de 1999 no Rio de Janeiro. A partir de 1945, dedicou-se profissionalmente à diplomacia, exercendo cargos em cidades como Barcelona ou Dacar. Em 1984, ocupou o lugar de cônsul geral no Porto. Regressou ao Rio de Janeiro em 1987, aposentando-se em 1990. Da sua obra poética, destacam-se obras como “Pedra do Sono” (1942), “A escola das facas” (1980) e, incontornavelmente, “Morte e vida severina” (1955), auto ao gosto tradicional protagonizado por um retirante, Severino, cuja caminhada representa o sofrimento e a miséria do povo do Nordeste. Em 1968, foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras e recebeu, entre outros, o Prémio José de Anchieta, de poesia, em 1954.

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