9.
POESIA
Se outras preferiam os tecidos de seda
do desejo
ela dava-se à ganga coçada
do amor
depois de noites mal dormidas.
Derivava pelas ruas perdidas
de uma cidade de luzes aquosas
opostas ao comércio
livre jogando a não ser vista
senão nos inquietantes interlúdios
das árvores.
Pautávamos os nosso sonhos
pelos seus inaudíveis passos,
toques insistentes à porta
a desoras e sem avisar.
Nunca fomos tão felizes
como quando arrancados
literalmente da cama
a seguíamos pelas alamedas
até a um mar sem dano.
Porque de praias e luz
era feito o nosso corpo,
essa espécie de fome.
in Postos de Escuta, Lisboa: Presença, Colecção Forma, 1ª edição, 2003, pp. 31-32.
8.
O GARFO, ANDRÉ KERTÉSZ
No espaço de uma vida
há memórias
às quais permanecemos
mais fiéis.
Vejamos: este garfo
apenas pousado na borda de
um prato vazio lembra
o gesto reparador da mãe
quando chegavas a casa.
Lembra o repouso do guerreiro
a palavra do filósofo
o silêncio do pastor.
in O Caçador de Tempestades, &etc, Abril de 2004
7.
SEMENTEIRA
Com um garfo
separava
para uma saca de plástico
arroz,
pedacinhos de pescada,
carapau, chicharro;
as espinhas deitava-as ao lixo.
O melhor do conduto
era sempre para os gatos.
Semelhante ao poeta
que guarda a parte maior
da sua vida,
as palavras,
para o leitor. →
6.
FOTOGRAFIA ACABADA DE REVELAR
Por vezes, só me dava dores de cabeça,
consumições,
a ponto de ter de ferrar-lhe um bofetão.
Mas que alegria noutras alturas:
quando vinda da escola chegava
ao pé de mim, a sorrir,
e me punha a mão, de criança, na cabeça
e eu,
um velha para aqui,
ficava tal
uma fotografia acabada de revelar.→
5.
Conservei-me afastada do estendal
durante algum tempo.
Sofro de vertigens, por isso
intimidava-me olhar para baixo,
o pátio vazio, restos de flores secas.→
4.
Um dia, tínhamos decidido
faltar às aulas, perguntou-me:
«o que fazes de noite
para estares sempre tão triste de manhã?» →
3.
Mudemos de casa; porque é preciso
arrumar as dores de outra maneira,→
2.
Se outras preferiam os tecidos de seda
do desejo
ela dava-se à ganga coçada →
1.
Às vezes tenho medo de esquecer tudo:
a casa onde nasci, o recreio
da escola, essas vozes
que lembram um copo de água
no verão. →
Jorge Gomes Miranda nasceu no Porto, em 1965. Publicou três livros de poesia: O que nos protege, Pedra Formosa, 1995; Portadas Abertas, Presença 1999 e Curtas-Metragens, Relógio D’Água, 2002.
No âmbito do Porto 2001, Capital Europeia da Cultura, escreveu uma novela O Transplante, incluída em Registos de uma transformação, Porto, 2001/2002, e organizou duas antologias literárias: Tráfico, antologia crítica da nova literatura portuguesa, e Double Face, antologia de autores portugueses que escreveram sobre a Holanda e de autores holandeses que escreveram sobre Portugal, do século XVI ao século XX.
Sito in http://www.wook.pt/