18.
A FERIDA
Real, real, porque me abandonaste?
E, no entanto, às vezes bem preciso
de entregar nas tuas mãos o meu espírito
e que, por um momento, baste
que seja feita a tua vontade
para tudo de novo ter sentido,
não digo a vida, mas ao menos o vivido,
nomes e coisas, livre arbítrio, causalidade.
Oh, juntar os pedaços de todos os livros
e desimaginar o mundo, descriá-lo,
amarrado ao mastro mais altivo
do passado. Mas onde encontrar um passado?
Poesia, Saudade da Prosa – uma antologia pessoal, Lisboa: Assírio & Alvim, 2011
17.
AS VOZES
A infância vem
pé ante pé
sobe as escadas
e bate à porta
sobe as escadas
e bate à porta
– Quem é?
– É a mãe morta
– São coisas passadas
– Não é ninguém
Tantas vozes fora de nós!
E se somos nós quem está lá fora
e bate à porta? E se nos fomos embora?
E se ficámos sós?
in Nenhuma palavra e nenhuma lembrança, Assírio & Alvim, Lisboa, Setembro 1999
16.
É isto um livro
esta espécie de coração (o nosso coração)
dizendo “eu” entre nós e nós? →
15.
tu que com sono a glabra ilha lavras →
14.
Alguém o chamara por outro nome,
um absoluto nome,
de muito longe →
13.
a mão é uma árvore
crescendo para dentro, →
12.
as que calei por serem muito cedo,
e as que calei por serem muito tarde,
e agora, sem tempo, me ardem; →
11.
Por onde vens, Passado,
pelo vivido ou pelo sonhado? →
10.
Vai pois, poema, procura
a voz literal →
9.
Poesia, saudade da prosa;
escrevia “tu”, escrevia “rosa”→
8.
A poesia vai acabar, os poetas
vão ser colocados em lugares mais úteis →
7.
Cheguei demasiado tarde e já todos se tinham ido embora restavam papeis velhos, vidas mortas, identidade, sujidade, eternidade. →
6.
Entre Deus e o Diabo venha o Diabo e escolha.
Entre amar-te e a vida te escolho ó dia como →
5.
Há em todas as coisas uma mais-que-coisa fitando-nos como se dissesse: “Sou eu”, →
4.
Uma coisa que me põe triste é que não exista o que não existe. →
3.
Sou o pássaro que canta dentro da tua cabeça que canta na tua garganta canta onde lhe apeteça →
2.
Uma breve, amável mágoa à
flor dos olhos, um distante desapontamento, morrias como se pedisses desculpa por nos fazeres perder tempo. →
1.
A meu favor tenho o teu olhar
testemunhando por mim
perante juízes terríveis:
a morte, os amigos, os inimigos.
E aqueles que me assaltam
à noite na solidão do quarto
refugiam-se em obscuros sítios dentro de mim
quando de manhã o teu olhar ilumina o quarto.
Protege-me com ele, com o teu olhar,
dos demónios da noite e das aflições do dia,
fala em voz alta, não deixes que eu adormeça,
afasta de mim o pecado da infelicidade. →
Jornalista e escritor, Manuel António Pina nasceu a 18 de novembro de 1943, no Sabugal, e faleceu a 19 de outubro de 2012, no Porto. Licenciado em Direito pela Universidade de Coimbra, em 1971, exerceu a advocacia e foi técnico de publicidade. Abraçou a carreira de jornalista no Jornal de Notícias, onde passou a editor. A sua colaboração nos “media”também se distribui pela rádio e pela televisão.Autor de livros para a infância e juventude e de textos poéticos, a sua obra apresenta uma grande coesão estrutural e reflete uma grande criatividade, exige do leitor um profundo sentido crítico e descodificador.”Brincando” com as palavras e os conceitos, num verdadeiro trocadilho, Manuel António Pina faz da sua obra um permanente “jogo de imaginação”, tal labirinto que obriga a um verdadeiro trabalho de desconstrução para se encontrar a saída.
Afirmou-se como uma das mais originais vozes poéticas na expressão pós-pessoana da fragmentação do eu,manifestando, sobretudo a partir de Nenhum Sítio, sob a influência de T. S. Elliot, Milton ou Jorge Luis Borges, uma tendência para a exploração das possibilidades filosóficas do poema, transportando a palavra poética “quer para a investigação do processo de conhecimento quer para a investigação do processo de existência literária” (cf. MARTINS,Manuel Frias – Sombras e Transparências da Literatura, Lisboa, INCM, 1983, p. 72).
Transmissora de valores, muita da sua obra infantil e juvenil é selecionada para fazer parte dos manuais escolares,sendo também integrada em antologias portuguesas e espanholas.
Os seus textos dramáticos são frequentemente representados por grupos e companhias de teatro de todo o país e asua ficção tem constituído o suporte de alguns programas de entretenimento televisivo, de que é exemplo a série infantil de doze episódios Histórias com Pés e Cabeça, 1979/80.
Como escritor, é autor de vários títulos de poesia, novelas, textos dramáticos e ensaios, entre os quais: em poesia -Nenhum Sítio (1984), O Caminho de Casa (1988), Um Sítio Onde pousar a Cabeça (1991), Algo Parecido Com Isto da Mesma Substância (1992); Farewell Happy Fields (1993), Cuidados Intensivos (1994), Nenhuma Palavra e NenhumaLembrança (1999), Le Noir (2000), Os Livros (2003); em novela – O Escuro (1997); em texto dramático – História comReis, Rainhas, Bobos, Bombeiros e Galinhas (1984), A Guerra Do Tabuleiro de Xadrez (1985); no ensaio – Anikki – Bóbó(1997); na crónica – O Anacronista (1994); e, finalmente, na literatura infantil – O País das Pessoas de Pernas para o Ar(1973), Gigões e Amantes (1978), O Têpluquê (1976), O Pássaro da Cabeça (1983), Os Dois Ladrões (1986), Os Piratas(1986), O Inventão (1987), O Tesouro (1993), O Meu Rio é de Ouro (1995), Uma Viagem Fantástica (1996), Morket(1999), Histórias que me contaste tu (1999), O Livro de Desmatemática e A Noite, obra posta em palco pela Companhia de Teatro Pé de Vento, com encenação de João Luís.
A sua obra tem merecido, frequentemente, destaque, tendo sido já homenageado com diversos prémios, como, por exemplo, o Prémio Literário da Casa da Imprensa, em 1978, por Aquele Que Quer Morrer; o Grande Prémio Gulbenkian de Literatura para Crianças e Jovens e a Menção do Júri do Prémio Europeu Pier Paolo Vergerio da Universidade de Pádua,em 1988, por O Inventão; o Prémio do Centro Português de Teatro para a Infância e Juventude, em 1988, pelo conjuntoda obra; o Prémio Nacional de Crónica Press Clube/Clube de Jornalistas, em 1993, pelas suas crónicas; o Prémio daCrítica da Associação Portuguesa de Críticos Literários, em 2001, por Atropelamento e Fuga; e o Prémio de Poesia Luís Miguel Nava e o Grande Prémio de Poesia da APE/CTT, ambos pela obra Os Livros, recebidos em 2005.
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