TERESA
A primeira vez que vi Teresa
achei que ela tinha pernas estúpidas
achei também que a cara parecia uma perna
quando vi Teresa de novo
achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo
(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse)
da terceira vez não vi mais nada
os céus se misturaram com a terra
e o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.
*
MAÇÃ
Por um lado te vejo como um seio murcho
pelo outro como um ventre cujo umbigo pende ainda o cordão placentário
És vermelha como o amor divino
Dentro de ti em pequenas pevides
palpita a vida prodigiosa
infinitamente
E quedas tão simples
ao lado de um talher
num quarto pobre de hotel
*
A REALIDADE E A IMAGEM
O arranha-céu sobe no ar puro lavado pela chuva
e desce refletido na poça de lama do pátio.
Entre a realidade e a imagem, no chão seco que as separa,
quatro pombas passeiam.
*
CÉU
A criança olha
para o céu azul.
Levanta a mãozinha,
quer tocar o céu.
Não sente a criança
que o céu é ilusão:
crê que o não alcança,
quando o tem na mão.
*
O BICHO
Vi ontem um bicho
na imundície do pátio
catando comida entre detritos.
Quando achava alguma coisa,
não examinava nem cheirava:
engolia com voracidade.
O bicho não era cão,
não era gato,
não era rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
*
RIO
Ser como o rio que deflui
silencioso dentro da noite.
Não temer as trevas da noite.
Se há estrelas nos céus, refleti-las.
E se os céus se pejam de nuvens,
como o rio as nuvens são água,
refleti-las também sem mágoa
nas profundidades tranquilas.
*
LENDA BRASILEIRA
A moita buliu. Bentinho Jararaca levou a arma à cara: o que
saiu do mato foi o Veado Branco! Bentinho ficou pregado no
chão. Quis puxar o gatilho e não pôde.
– Deus me perdoe!
Mas o Cussaruim veio vindo, veio vindo, parou junto do
caçador e começou a comer devagarinho o cano da espingarda.
*
POEMA DE FINADOS
Amanhã que é dia dos mortos
vai ao cemitério. Vai
e procura entre as sepulturas
a sepultura de meu pai.
Leva três rosas bem bonitas.
Ajoelha e reza uma oração.
Não pelo pai; mas pelo filho:
o filho tem mais precisão.
O que resta de mim na vida
é a amargura do que sofri.
Pois nada quero, nada espero,
e em verdade estou morto ali.
Manuel Bandeira (Recife, 19 de abril de 1886 – Rio de Janeiro, 13 de outubro de 1968) foi um poeta, crítico literário e de arte, professor de literatura e tradutor brasileiro.