Foi no princípio de tarde soalheira de um Outono que já passou. Ouvia-se uma invulgar melodia, na esplanada do café onde se reuniam muitas vezes esses dois amigos barqueiros.
As palavras que se desprendiam livres das suas bocas, eram músicas, lembravam o som dos remos de um barco Valboeiro a cair pausadamente sobre as águas do rio Douro, num remanso onde procurava atracar em segurança.
Há momentos em que as águas giram em redor de si próprias, num determinado ponto. São remoinhos que se formam entre duas correntes opostas e provocam a paragem da corrente principal. Voltam atrás, como se se tivessem esquecido de alguém, algures a acenar num cais, ou o desejo de abraçar uma falésia agora em seco, durante a já longa caminhada, sem perceber que, tanto na vida humana como na dos rios, todo o tempo que passou, é irrecuperável, não há maneira conhecida de voltar a ser vivido.
Por momentos, flutuaram no imaginário destes homens experientes nas fainas da navegação fluvial, as memórias dos dias lindos que viveram a remar num barco sobre a água. Nenhum deles possuía embarcação nessa altura, separaram-se delas muito a custo por causa da incapacidade física que a velhice provoca. Foram arrancados à força dos braços do rio, bela e traiçoeira amante a quem eles dedicavam um amor platónico sem limites.
No evoluir das narrativas, as horas passavam lentamente e incertas, como o amor que prende lábios e barcos por instantes, mas que nunca será eterno. Umas vezes, sorriam; outras vezes, os seus olhos cansados por efeito de quimeras e miragens de belas ninfas constantemente a tentá-los nas areias das margens, humedeciam-se ao sabor das recordações.
Como por artes de magia, naquela fascinação inocente de encantamento ou deslumbre que só as crianças sentem e captam como mais ninguém, pareceu que o rio que corria muito pertinho dali e lhes tinha uma certa afeição, principiou a entoar muito baixinho junto com eles, os versos de uma canção muito antiga:
«É tão bom ser pequenino
Ter mãe, ter pai, ter avós
Ter esperança no destino
E ter quem goste de nós.»
A fraterna ternura dos simples espalhava-se nos fios dos cabelos da brisa da tarde e nos raios da luz coada de um sol em declínio, na agonia de um dia que findou, na serena e trágica hora do crepúsculo.
O rio corria muito devagar dentro dos limites do seu primitivo leito e na suave contemplação do olhar dos mais sensíveis. Nunca deixou de correr na direcção do mar imenso, refúgio de navios, de outros marinheiros corajosos, de aves marinhas e de fauna aquática de variadas espécies. As águas que passam uma vez, jamais voltarão aos lugares por onde correram a banhar as terras, a fertilizar ribeiras durante milhões de anos.
As pessoas deste povoado excessivamente belo e antigo onde viveram, nunca morrem, fundem-se na branca névoa que o rio provoca em dias de luto, desaparecem dos nossos olhos chorosos para sempre, tranquilas, cobertas de amor e de luz.
Tal como um barqueiro, conto histórias onde eles, como se fossem protagonistas da mais bela criação teatral levada à cena, alguma vez no mundo, o fizeram durante toda a vida. Homens e mulheres que reproduziram nos palcos comuns deste espelho de água, ainda em vida, momentos inesquecíveis de alegria e felicidade.
Faço-o para que, nos dias mais lembrados, quando erguer a minha taça a transbordar de espuma em sua memória, sinta a elevada honra de os ter junto de mim para sempre.
Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do Douro; Douro Inteiro; Douro Lindo; A Ninfa do Douro; Palavras – Conversas com um Rio; Fado Falado – Crónicas do Facebook; Amanhecer; Barcos de Papel; Casa de Bonecas e Crónicas de outro Mundo.