– Vais escrever um poema? – perguntam-me em tom divertido. A pergunta rasga-me a abstração e o anotar mental dos esquiços em palavras que me vão fugindo da memória.

Retorno ao jantar e continuo a sorrir num misto de envergonhado e divertido. A funcionária bamboleia as travessas de carne semi-crua e quase morna, a travessa e a pessoa, pousando-as nas toalhas de papel onde a matemática assíncrona do filete cerâmico desenha circunferências de gordura com diferentes diâmetros. Até aqui, a matemática circunscreve-me aos tempos adolescentes, entre perguntar-me para que raio necessitaria daquilo para o meu futuro e o responder-me, volvidas décadas, o quanto o caos se cria em padrões cristalinos, numa espécie de linguagem que permite compreender a sombra do grafite caído do lápis infinito na caligrafia do Criador.

Com o frio característico do final de Outono a descaracterizar-se, no início de noite amena, estacionei à distância do restaurante e a uns aproximados trinta anos do local combinado. Caminhei no passo ansioso de quem se veste na adolescência com o parco que traz, nunca indagando o que de mais necessário se torna, quando tudo se tem e vestimos além da forma e entrei no restaurante vazio, uma mesa povoada por um exército de invisíveis bêbedos rodeia o vulto vivo de um solitário agarrado a uma caneca de barro prenhe de carrascão tinto. No balcão fumarento perguntam-me ao que venho e contendo o riso, afinal entraria numa casa de pasto para quê?, digo o nome do anfitrião em local alheio. Fazendo-se luz, seria da iluminação lúgubre de Natal?, nos olhos da adolescente funcionária, dirijo-me à mesa colocada atrás da porta de madeira do que seria um antigo lagar e abro-a.

Subitamente, apesar da minha altura pouco ter mudado desde os tempos discentes, a tosca e espessa porta abre-se para uma sala de aula. Na mesa comprida, meia turma de turma e meia, adolescentes despem-se de trajos adultos e ainda que o tempo tenha rasgado uma ou outra ruga ou, no humor, inchado um ou outro corpo, ladeiam-se uns aos outros numa espécie de exército feliz e pacífico, onde cada um esgrime a sua maior e melhor gargalhada. O que poderia eu fazer, além de escutar, rir, sonhar, viver aventuras contadas e episódios esquecidos, colocados atrás das memórias poeirentas?

O menu pouca importa a quem se alimenta da vida. O vinho despede-se triste das garrafas, pouco bebe quem se nutre do viver. As conversas cruzam-se e a teia criada pelas vozes convida-me, como sempre, ao característico silêncio do meu falar. O troar das gargalhadas veste-me de um sorriso tímido, as insinuações infantis em adultas e satisfatórias risadas não perdem o vigor. Todos no seu horário e agenda, chegam ao combinado encontro. Lento, como usual, cheguei à reunião apenas há um punhado de anos, mas é como se nunca me tivesse libertado da sala de aula, da visão preenchida dos amigos adolescentes. Compreendo agora, que o meu calar é justificado pelo deglutir da vida, feliz de me ver no calor e felicidade alheia que é o olhar de um amigo. E, por isto, à pergunta feita – Vais escrever um poema? – quando sorri envergonhado, na verdade queria dizer:
– Gostava, mas não sei escrever.

Miguel Gomes nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. É co-autor do livro “Alma Tua” (2019, Guerra e Paz) subordinado ao Vale do Tua e da exposição de fotografia e poesia “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordinada à Rota do Românico. Publicou crónicas na revista online “Bird Magazine” e, actualmente, no Correio do Porto e Canal N. Publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo”.

Partilha
163
COMPARTILHAR

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here