Enquanto desço a rua no passeio cinzento e me desvio, a sorrir, de namorados adolescentes em descobertas não lectivas ou lecionadas, oscilo na recordação do que me leva à minha antiga escola secundária de Baltar e na preocupação com o ter colocado, ou não, todos os livros na mochila e evitar uma desnecessária falta de material. Não há meninas ao largo e, assim, a vergonha passa também para dentro do saco. Sigo confiante.
O portão está aberto, mas a educação imobiliza-me, enquanto coloco a mão no bolso de trás à procura do cartão de estudante. Do lado de lá do postigo, perguntam-me ao que me dirijo com uma solenidade dedicada, apenas, aos adultos externos à comunidade escolar.
Acordo. Claro! Que patetice! Apercebo-me dos acumulados trinta anos de tamanho que me fizeram crescer além da última visita, ainda estudante formal, à minha outrora estreada escola secundária, lar, incubadora de sonhos, alpendre forrado a livros numa varanda para o universo em expansão que se planta a cada página da vida virada.
Desço adulto os degraus de cimento e cruzo-me com o meu olhar, a subir, um dossier sob o braço direito, mãos nos bolsos, rodeado de nuvens sonhadoras plantadas por um conto lido na aula de português cuja subjectividade emparelhava, na perfeição, com algumas equações matemáticas, assentes nos pilares da história que parecia fazer rimar as lendas com as fendas geográficas da serra do cruzeiro e tornava impossível a decisão, entre conteúdos separados em línguas e ciências. Cruzamos os olhares, as mesmas indagações volvidas três décadas. Agora, talvez, mais rico em pastagens de torgas e evangelhos segundo quem os queira ter escrito.
As paredes encontram-se encostadas ao meu mesmo imaginário que me respirou, talvez com mais sonhos lavados nas verticalidades de uma sombra adolescente. Os blocos de edifícios mantêm as portas abertas para salas de quem queira aprender, sem mencionar os corredores cobertos por inocência adolescente pré-adulta, pilares grafitados com corrector ortográfico que, apagando as imperfeições estruturais, permitiam gravar para uma eternidade de meses, os nomes de dois enamorados, ou um, vá, porque o outro, ou outra, raramente o sabia ou aceitava, dependendo de quem o tenha escrito.
A porta do bloco A, com a sua secretaria, sala dos professores e salas de aula, mantém o cunho presidencial da importância de ver tratados dentro si temas importantes. Assusto-me momentaneamente, quando fito o meu próprio reflexo sorrindo-me no vidro. À esquerda, as vozes baixas e pacatas tratam de assuntos engrenantes que fazem toda uma comunidade funcionar como um relógio suíço. E ainda que se atrase aqui e além ou adiante ali e acolá, um pouco de corda e tensão no momento certo e tudo regressa ao tiquetaquear síncrono e orientado. As funcionárias, salvo raras excepções são as mesmas que me viram adolescente. Sou atendido com um sorrido. O olhar alvo, bem mais envelhecido que o meu, emociona-me. Reconhecendo a funcionária, saúdo-a pelo nome. Há um sentimento maternal que não compreendo e me emociona. Nos seus óculos, as lentes grossas aumentam a bondade gravada na íris. O sorriso, igual. O timbre, uma música que julgava ter ensurdecido em mim. Assino o documento que me é solicitado com caligrafia infantil e remato, feliz, com uma pequena lágrima que cai no final do formulário e, ainda, me impede de continuar a escrever sem me emocionar.
Miguel Gomes nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. É co-autor do livro “Alma Tua” (2019, Guerra e Paz) subordinado ao Vale do Tua e da exposição de fotografia e poesia “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordinada à Rota do Românico. Publicou crónicas na revista online “Bird Magazine” e, actualmente, no Correio do Porto e Canal N. Publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo”.