DISSE uma occasião Alexandre Dumas, que a civilisação de um povo se conhecia pelas cusinhas. Nós sem negarmos a asserção do insigne romancista, julgamos, que é pelas estradas publicas, que melhor se póde ajuizar do estado de adiantamento das nações; e restringido mais os termos do juizo, entendemos, que pelas plantações viárias se pôde bem calcular o progresso e illustração social. O aformoseamento dos logares públicos revela o gosto, a arte, e até certo ponto a sciencia dos povos que os frequentam. Neste sentido as estradas publicas ornadas de lindo e variado arvoredo, disposto com ordem e regularidade apresentariam ao caminhante instruído curiosos espécimens da nossa Flora, e a todos os passageiros um continuado trajecto de recreio e desenfadamento. Porém os arvoredos não servem unicamente para aformosear as estradas, porquanto é geralmente sabido que elles purificam o ar, mitigam os ardores do sol, nas estações calmosas, e moderam a violência e causticidade dos ventos, que açoutam de inverno a quem a elles se expõem.[1]
Antes da natureza, dos motores de combustão, do ambiente, do dióxido de carbono, de segurança e de outros tantos mil assuntos em que hoje se ensarilham estes e outros temas, era assim o olhar técnico-científico-poético-moral para as árvores das estradas. Se fossem araucárias assim de lindas como esta, até uma motosserra ficava com os dentes todos cariados só de pensar que a podiam usar para derrubar tal exemplar. Viva a botânica.
Não imagino a tralha legal que embrulha hoje este assunto. Como qualquer coisa que foi posta ao longo do precipício entre dois mundos que não se dão, as árvores das margens só podem escapar se defenderem a sua condição de objectos pendurados no céu com uma haste rasando o solo só para não serem levadas pelo vento e assim atrapalharem o trânsito dos tordos, drones e outras aeronaves. Enquanto não, a gritaria avoluma-se. Dantes eram os proprietários confinantes com a estrada que invocando os seus direitos do domínio privado, não queriam ramagens ou raízes que prejudicassem os terrenos e os cultivos. Agora, sem cantoneiros, seja domínio privado ou público, não chegaria uma floresta para produzir papel que chegasse para imprimir leis e regulamentos sobre espécies protegidas e desprotegidas, infestantes e relíquias, que aumentam ou perturbam a segurança rodoviária, que ganham piolho e carraça, que quando abanadas largam fruta podre, secas, incendiadas, cheias de pássaros que defecam para a via pública, habitadas por macacos, que dão flor fora de época ou que projectam ouriços a grande velocidade, etc., a lista não tem fim até atingir aquela categoria que Jorge Luís Borges usa na sua conhecida lista de classificação dos animais: as que vistas ao longe, parecem moscas.
Haveria depois outros potenciais conflitos de alta e baixa tensão entre árvores e postes da electricidade, dos telefones e de sei lá mais de quê, sinalização vertical, arcos de festa, paragens das camionetas, viadutos e outras obras de arte (bruta), galerias técnicas, tubos, canos e fios, pistas cicláveis, alminhas, pórticos, painéis solares, e todo um conjunto de outros animais selvagens que por baixo e por cima do asfalto, cruzando os céus ao longo da via, em diagonais, enxames e trajectos erráticos, se estatelam contra os faróis como os mosquitos, ou roem os pilares dos viadutos, ou se deitam no eixo da via como vacas sagradas e sapos estatelados com as entranhas ao sol.
Como se não bastasse, a rede rodoviária enredou-se num labirinto de tutelas, concessões e responsabilidades por onde depois se podem re-organizar estes labirintos de factos, por exemplo:
– Estando uma franga empoleirada num ramo de uma árvore plantada na berma da estrada municipal, veio um assador pelos ares que a assustou; tenra de carnes como era e pouco conhecedora dos métodos da aviação, ensaiou um vôo, cansou-se e precipitou-se num viaduto de uma estrada nacional pouco mais à frente; ainda não refeita do susto, uma posta de bacalhau à espanhola que vinha em contra-mão em excesso de velocidade, mandou-lhe um panázio que a precipitou na auto-estrada que passava em baixo, vindo a cair exactamente no limite entre uma concessão da Brisa e outra da Ascendi. Sem ter reparado, com o nervoso do filme, pôs o seu primeiro ovo quase de esguicho. Nem casca tinha, derramou-se pelo asfalto quente e ficou praticamente cozido. Ainda a franga estava a pensar se havia ou não de comê-lo (podia ter sido seu filho, afinal…), veio um camião, apanhou uma pitada de gema que lhe caiu mal numa nesga de pneu careca e despistou-se estrondosamente; a carga do contentor, flocos de aveia que explodem na boca, explodiu. O fogo propagou-se num ápice. A franga assou e a montanha toda; depois de ardida a floresta, ardem abismos e profudenzas até às entranhas já lá vão três luas… é fogo que arde sem se ver.
Devia ser estritamente proibido usar árvores como poleiro de galináceos imaturos nas estradas municipais, é o que eu penso.
Por Álvaro Domingues autor de A Rua da Estrada.
[1] Rodrigo de Moraes Soares(1853), “Arborisação das Estradas Publicas”, Archivo Rural – jornal de agricultura, artes e sciencias correlativas, Nº1, 1º Anno, Imprensa União-Typographica, Lisboa, 1853, p.29.
Moraes Soares para além de director do Archivo Rural, era deputado às Cortes e Chefe da Repartição da Agricultura na Direcção Geral do Comércio e Indústria do Ministério das Obras Públicas e defensor de um Partido dos Agrocratas para fomento da agricultura.