CONCLUÍDA em finais do séc. XIX, a Estrada da Circunvalação era uma barreira fiscal para controlar a cobrança do Real da Água, imposto aplicado a uma série de produtos de consumo como a carne, as bebidas alcoólicas e fermentadas, o arroz descascado, o vinagre e o azeite de oliveira expostos à venda. A estrada/cerco, a actual N12, era constituída por uma via interna e outra externa, separadas por um fosso contínuo de dois a três metros de profundidade. Tem cerca de 17 Km, rodeando parte do município do Porto e ainda restam algumas Casas de Portagem onde os impostos eram cobrados. Uma delas é o Teatro da Vilarinha.
Como ainda passou pouco tempo desde que as cidades perderam muros e limites, ainda se pensa que a urbe tem nome próprio, um limite bem definido, e um centro. Nesse filme, a cidade é um “interior” fixado no tempo e no espaço. Seguindo a tradição, tudo o que estivesse fora desse recinto era o arrabalde, o subúrbio, ou periferia e mudava de nome, tomando muitas designações consoante o caso, ora o nome do município, ora nomes de freguesias, ora um mil cento de localidades.
Vendo depois que tudo estava colado, que os limites não eram claros – muitos tiveram vidas longas porque eram grandes rios, montes, despenhadeiros… e dificultavam muito a circulação -, que as redes de ruas, estradas, auto-estradas, águas, ferrovias, energia, telecomunicações,…, se espalharam por todo o lado e aí viabilizavam a localização de muitas actividades antes só existentes no centro, lá se foi o mapa imaginário da cidade/metrópole enquanto ovo estrelado com a sua gema central muito proteica e vitaminada. O centro tinha perdido o monopólio da centralidade; já não detinha o exclusivo da aglomeração de funções e empregos variados e especializados e deixou de ser o local com melhor acessibilidade. Restava-lhe o exclusivo das antiguidades para iluminar à noite, para a UNESCO classificar e a indústria turística ajavardar.
Finada a cidade por deriva e descolagem entre a palavra e aquilo que devia designar, veio a urbanização – redes, infraestruturas, edifícios, actividades, gente -, ora concentrada, ora não, ora variada, ora especializada, ora aeroporto, ora prédios pequenos e grandes, casas, barracos, armazéns e centros comerciais e uma lista que dava para encher uma wikipedia.
Resta a Estrada da Circunvalação, nem estrada, nem avenida, nem rua, nem circunvalação de nada. Somatórios de acasos velhos e novos, do gigantismo da Asprela com suas faculdades e hospitais, os quartéis, bombas de gasolina, plátanos pelo meio, inferno viário entre a Srª da Hora e a Areosa com saídas e entradas para nós, auto-estradas, ruas e estradas, muitos semáforos de três cores, passeios que desaparecem e aparecem às vezes com bolas de ferro para que não sejam galgados pelos carros, portões, grades, muros, muito poste com fios atados, de um lado um nome, de outro lado, outro, asfalto pintado.
Deus nosso senhor permita que não me apareça uma parede de vidro gigante nas traseiras do quintal. É muito reflexo quando o sol vai para o poente. Fico escaldada e entalada. Entre o asfalto ao baixo e a vidraria ao alto, não sei que mais me amofina. Pintarei labirintos de linhas brancas entre as pedras do muro, da chaminé e outras que inventarei na varanda. Pintarei para não sufocar.
Às vezes, nos grandes painéis de publicidade virados para a Circunvalação, aparecem aviões a levantar vôo pela esquina de cima. Me leva onde você vai, leva?
Por Álvaro Domingues autor de A Rua da Estrada.