AS estradas que vão pelas cotas altas das encostas têm larguezas de vistas que nem se imagina. Sigam-se as instruções: onde aparecerem placas a dizer Estrada, certifique-se que essas larguezas de vistas estão mesmo lá; de seguida, procure-se um local bom para paragem (dantes havia uns sinais muito lindos com a silhueta das camionetas da carreira) e pare-se olhando a encosta da outra banda.
Chegou o momento da contemplação. Use-se um bom produto para clarear o humor vítreo, a córnea, a pupila e o resto da tralha de ver, e mantenham-se as pálpebras bem abertas. Pode fotografar, desenhar ou organizar toda a emoção num molho de neurónios que esteja disponível para memória futura.
No fundo do vale está um casario apinhado onde a encosta era só pedra e mato e onde se vivia do que a terra dava que era quase nada tirado a trabalhos forçados das leiras e dos socalcos. À volta, a montanha, qual gigantesco sistema de electrodomésticos, fazia de frigorífico no inverno e de torradeira no verão. Para ir da camioneta até lá, descia-se um caminho íngreme que passava o rio. Na estrada, para um lado é Amarante, para outro, Vila Real.
Tardou a autoestrada que galgou o Marão em 1988 por curvas, descidas e subidas impossíveis até chegar às névoas do Alto de Espinho, camiões atrapalhados, trave com o motor, ligue os faróis em caso de nevoeiro. Há estatísticas – de 1996 a 2015 morreram 136 pessoas em acidentes no IP4 entre Amarante e Vila Real. Na corte, na mornice das alcatifas dos ministérios, lamentavam-se estes dramas na província, coitados, são nervosos, andam muito depressa, é o piso escorregadio, chove muito, toda a gente sabe que as montanhas vão perdendo altura com o tempo e esta também há-de ficar mais açapada e assim.
Veio finalmente outro traçado, taludes, viadutos e túneis nunca vistos. A nova autoestrada vai serena pela sua própria geometria, seguindo raios mínimos de curvatura, inclinação do perfil longitudinal, raio côncavo e convexo, separador central, taludes, bermas, faixas de rodagem, distância entre nós de acesso e não está tudo: a autoestrada, para além de ser o que é, é também um dispositivo de fazer paisagem, dotado de uma tecnicidade própria e relativamente estável.
Claro que o tempo longo de onde vem o esforço continuado de arrotear terras para agricultar, construir socalcos, casas, caminhos, canais, azenhas, etc., pode ser também lido como um resultado complexo da aplicação de tecnologias de construção, de selecção, propagação e cultivo de plantas e de criação de animais, de irrigação, ou de fabrico dos mais variados objectos, utensílios ou produtos. Por se associarem todas num lugar, por possuírem uma história em conjunto, por serem reconhecidas em interacção mútua, o reconhecimento do sistema que as relaciona sobrepõem-se a qualquer tecnologia individualmente. Dizemos então que no fundo do vale está um aglomerado, uma povoação rodeada por campos de cultivo.
A estrada, a camioneta da carreira e, sobretudo, a autoestrada aparecem como objectos técnicos individualizados que pertencem a outro sistema, a outra geografia, a outros modos de associar e entender as coisas que vemos. Tudo pertence à realidade.
SOBRE O AUTOR: Álvaro Domingues (Melgaço, 1959) é geógrafo e professor na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, onde também é investigador no CEAU-Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo. É autor de A Rua da Estrada, Vida no Campo e Volta a Portugal. Colabora com o Correio do Porto desde janeiro de 2015.