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Rua da Estrada da Identidade

Rua da Estrada da Identidade

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EM tempos de globalização, a identidade tornou-se uma espécie de decoração de interiores – coisa para criar uma certa ambiência, mostrar um estilo de vida, afirmar uma tendência de gosto e uma visão do mundo, não se deixar dissolver na mesmice ou na infinita cacofonia dos humanos.

Entretanto, a globalização segue o seu caminho imparável: as tecnologias da informação e da comunicação distribuem quase instantaneamente tudo por todo o lado. Como nunca antes tinha acontecido, o local e o localismo dissolvem-se em complexas redes de organização e de regulação que tudo conectam (mesmo quem não quer), provocando constantes afloramentos, borboletas e tufões; a desregulação do capitalismo liberal – os mercados, como se diz -, ocupa o lugar dos Estados fazendo de qualquer coisa um negócio onde vale tudo incluindo pôr e tirar olhos.

A crise do Estado-nação (principal unificador de um colectivo partilhando uma cidadania) é a crise que mais perturba a identidade. Uma crise de legitimidade da soberania, dos governos, das instituições, etc., deixa o imaginário da identidade ao sabor das ancestralidades míticas – um presente incerto recheado com o passado mais que perfeito – ou da projecção mediática das estrelas, futebolistas ou prémios Nobel, consoante as inclinações. Eu, a minha gente, nós, os outros, o meu povo, as nossas coisas…, todas estas expressões se tornam de sentido móvel, densidade rarefeita, mecânica elástica e tempo breve ou incerto.

Uma “comunidade imaginada”[1] construída para preencher um sentimento colectivo de pertença, tornou-se uma tarefa em constante revisão, contrariando a ideia de permanência que normalmente é associada à resistência dos lugares comuns da identidade.

Por isso se erguem Galos de Barcelos gigantescos nos lugares onde muita gente passa. Cantarão de madrugada anunciando a alvorada como cantou o da lenda – que ainda não era de loiça mas já estava assado – para que se soubesse que havia um inocente que iria ser injustamente condenado. Assim se traçará uma fronteira entre uma qualquer coisa de barro colorido posta à ilharga da valeta, e uma outra, como esta, que não precisa de legenda e tanto pode ser olhado com o neurónio relativamente alheado, como arremessado violentamente contra alguém que manifesta através do galo uma ignorância, diferença ou desdém.

Percebe-se por isso a teoria da “construção do inimigo” de Umberto Eco: “ter um inimigo é importante, não apenas para definir a nossa identidade, mas também para arranjarmos um obstáculo em relação ao qual seja medido o nosso sistema de valores, e para mostrar, no afrontá-lo, o nosso valor” [2]

É este o jogo permanente do devir identitário. Como numa complexa engrenagem cibernética, a identidade manifesta-se no tráfego cruzado da vida de todos os dias, entre realidades e expectativas, entre o sentimento de si e a relação com os outros, entre universos locais e locais universais.

Por Álvaro Domingues autor de A Rua da Estrada.

[1] Benedict Anderson 2005. Comunidades Imaginadas: Reflexões Sobre a Origem e a Expansão do Nacionalismo. Lisboa: Edições 70 (ed. original, Imagined Communities: Reflections on the Origin and Spread of Nationalism, London: Verso, 1983)

[2] Umberto ECO (2011), Construir o Inimigo e outros escritos ocasionais, Ed. Gradiva, Lisboa, p.12.

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