ÁLVARO Domingues viu e registou: o que dantes era um posto de abastecimento de combustível para veículos automóveis é hoje um estabelecimento de venda de sepulturas à face da rua da estrada. Não há nada que enganar: fica ali em Joane, Famalicão. O geógrafo questiona-se sobre a mudança do ramo. Terá sido um engano? É a economia a funcionar? O que dirá a vox populi? E Saramago? E Foucault? E a Prevenção Rodoviária Portuguesa? Uma coisa é certa: este é um dos casos em que a realidade supera a ficção.
Por Paulo Moreira Lopes
Sistema de interpretações:
– Saramago – “Se a morte havia sonhado com a esperança de alguma surpresa que a viesse distrair dos aborrecimentos da rotina, estava servida. Aqui a tinha, e das melhores.”[1]
– Histórico do assunto – na Via Appia, a mãe das estradas do império romano, era de bom-tom sepultar matronas e patrícios e aí construir os seus monumentos funerários;
– Engano – A Companhia Espanhola de Petróleos SA investiu nos dois lados da Rua da Estrada mas só passavam carros num;
– Acidente – A Prevenção Rodoviária Portuguesa lançou uma nova campanha de sensibilização contra as mortes por acidente rodoviário;
– Economia – Negócio que é negócio tem que ter um bom combustível; a velocidade a que vai o envelhecimento da população, aguça o empreendedorismo e a mudança ramo;
– Afirmação frequente – O preço da gasolina está pela hora da morte;
– Uma tese – “Desde muito cedo que as necrópoles se implantaram próximo dos espaços dos vivos, edificando marcas territoriais de enorme valor material e simbólico, construindo uma paisagem cultural em que se confrontava a arquitectura da morte com a arquitectura da vida (…)”[2]
– Heterotopias – “…foi só a partir do séc. XIX que cada um passou a ter direito à sua pequena caixa para a sua pequena decomposição pessoal; por outro lado, foi também só a partir do séc. XIX que se começaram a localizar os cemitérios no limite exterior das cidades” [3]
SOBRE O AUTOR: Álvaro Domingues (Melgaço, 1959) é geógrafo e professor na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, onde também é investigador no CEAU-Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo. É autor de A Rua da Estrada, Vida no Campo e Volta a Portugal. Colabora com o Correio do Porto desde janeiro de 2015.
Texto publicado originalmente em 16 de Maio de 2015
- José SARAMAGO (2005) As Intermitências da Morte, Ed Caminho, Lisboa, p.54
- Maria Manuel L.P OLIVEIRA (2007) In memoriam, na cidade, Universidade do Minho, (tese de doutoramento em Arquitectura, Preâmbulo), http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/6877
- Michel FOUCAULT (1984), Dits et écrits 1984 , Des espaces autres (conférence au Cercle d’études architecturales, 14 mars 1967), in Architecture, Mouvement, Continuité, n°5, octobre 1984, p. 48