PASSARÃO muitos anos, antes que seja possível fotografar esta composição numa auto-estrada. A racionalidade tecno-científica a carburar prescrições para a boa performance da auto-pista nunca aceitaria ciclistas nessas vias rápidas. É isso mesmo que se pode constatar naquele sinal de trânsito proibido que há nas entradas das auto-estradas com uma cruzeta vermelha que assinala peões, gado, carroças e outros veículos que não sejam automóveis ou motociclos – o gado atravessava-se; os peões podiam ser atropelados e as carroças dão cabo do piso.
Por outras racionalidades, quando a Igreja Vaticana quis responder à modernidade, ainda não tinha resolvido a contrariedade de Galileu Galilei que, ao mesmo tempo, afrontara a igreja com a ciência e com uma visão científica que a igreja tinha classificado como herética. Muito menos se tinha libertado dos seus dogmas ou tinha digerido Voltaire, a Revolução Francesa, Marx, Nietzsche, Freud e um exército crescente de ateus e descrentes a nadar nos milagres da ciência e da técnica, dos progressos industriais, da liberdade dos indivíduos, do pluralismo das ideias, do primado da compreensão racional e todo esse fascinante, sofisticado e esmagador arsenal.
O sujeito moderno, prático e despachado como é, não iria apreciar a teatralidade da liturgia canónica, o requinte e o exótico dos paramentos e das alfaias, a cenografia rebuscada do ritual, do latim e dos fumos do incenso em excesso. Para uma antropologia moderna, uma teologia sobre o homem perfeito – uma cristologia límpida sem promessas, penitências e outras negociações com o sagrado, sem negócio de indulgências, sem procissões, purgatório, anjinhos, intercessões de santos, santinhas e beatos, réis magos e pai natal, foguetes, arraial e vinho novo. Tudo em linguagem que se perceba com o mínimo de imagens e talha dourada.
Muito difícil, muito abstracto, muito científico, demasiado sagrado. Por isso as procissões andam na estrada. A racionalidade técnica da segurança rodoviária e a racionalidade teológica do Vaticano II são apenas duas das muitas racionalidades que há entre outras.
É aconselhável, no entanto, que os ciclistas vestidos de licra não esbarrem nos homens do pálio e no sacerdote que solenemente transporta o Santíssimo. Em caso de conflito, não esquecer que quando as procissões andavam por estes caminhos, ainda faltavam muitos séculos para haver asfalto. Por isso me pergunto se não poderiam ir estes ciclistas ciclar para a auto-estrada no dia europeu sem carros em dia de domingo sem procissão e nunca contra o sol, de preferência.
Por Álvaro Domingues autor de A Rua da Estrada.