MUITOS mistérios por força haverá para que se explique tão esforçado aparato circulatório que assim liga espaços e tempos por justaposição directa sem mais rodeios: uma ponte moderna desemboca numa rotunda espalmada de cujo centro arranca um escadório por sobre grossa arcaria em pedra aparelhada que aparenta idade venerável. No alto do escadório, uma pequena capela sobre um arco de pedra, onde se venera a Virgem das Neves.
Acelerando o ocorrido, havia antes uma ponte romana para passar este rio. No séc. XII uma rainha quase tia do nosso primeiro Henrique mandou destruir a ponte para que não passasse por aí o exército de seu marido com quem andava desentendida: conflitos domésticos que destroem coisas à real medida das partes em contenda. Quatro anos depois a rainha manda refazer a ponte e assim ficou uns séculos até que a corrente do rio a reduziu a pouco mais do que um arco. Séculos depois, por causa da construção de uma barragem, tudo iria ficar debaixo de água. Refez-se então o povoado no cimo da encosta e mudaram-se para aí umas igrejas e casarios do tempo do antigamente e fez-se uma nova ponte pela cota superior a ligar terras enxutas das duas margens da albufeira.
Feito isto, pedra a pedra, transladou-se o arco restante da falecida ponte sobre o qual se empinou uma escalinata que desemboca numa capela posta sobre o arco da antiga portagem de cobrança de taxas de atravessamento de mercadorias do tempo da velha travessia paga em maravedis.
É Portomarín nas margens do rio Minho, terra mágica no caminho francês que leva a Santiago e por onde passam dezenas de milhares de peregrinos em cada mês. Passando o rio e sem contornar a rotunda, os caminhantes esfalfados precipitam-se para o escadório e estendem-se nos degraus para aliviar os pés, disparar selfies e atacar o farnel: uma algazarra. O rodopio dos automóveis segue em baixo às voltas evitando escadas, peões e coisas em contramão.
Por tantas e tais complicadas, reais e sagradas razões, percebe-se agora melhor a radicalidade deste artefacto tridimensional. Nunca se deve pensar que o que quer que esteja numa rotunda seja um disparate inexplicável porque tudo o que existe é explicável pelo simples facto de existir.
O que não existe, ou é porque já não se vê ou nunca se viu, ou está debaixo de água, ou escondido noutro lugar mais seco por baixo de um pedregulho, ou está pintado de transparente cristalino.
Por Álvaro Domingues autor de A Rua da Estrada.