A SURPRESA é um amplificador de emoções. Não falo das surpresas que assustam. Falo daquelas que nos resgatam da rotina, do aborrecimento, do tudo programado-previsível, morno, penteadinho, limpinho, chato.

É assim a Rua da Estrada. Em olhando para o lado, pode acontecer uma rampa abrupta ladeada por muros a dar uma volta e a desaguar num portal com grade e legenda. Atrás, um edifício, qual gigantesco micro-ondas com moldura, serve de pano de fundo – vidro de fundo, mais precisamente. Vai tudo num cromatismo a dizer com o pardo do dia, entre o branco e o cinzento quase negro na tonalidade mais carregada.

Não é pela escassez da paleta das cores que a composição perde. Antes pelo contrário; ganha em definição, contraste e jogo de volumes, texturas e geometrias.

Agora que esta vidraria aqui se instalou ainda nova e por estrear, é que a vivenda é mesmo surpresa. Que prazer não será trabalhar na horta e no quintal, olhar para o longo envidraçado e ver os aviões a passar por entre o esfarrapado das nuvens; que noites mágicas, com a fosforescência interior do edifício a insinuar-se para o vizinho. Escrevo-o sem ironias bacocas. Penso apenas no desencantamento daquela nesga de terreno bravio lá ao fundo a ameaçar ocupar a imagem e na monotonia dos eucaliptos que brotam por todo o lado, iguais todo o ano, clones, tristonhos, almas atormentadas pelo fogo guardado na sua memória vegetal.

SOBRE O AUTOR: Álvaro Domingues (Melgaço, 1959) é geógrafo e professor na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, onde também é investigador no CEAU-Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo. É autor de A Rua da EstradaVida no Campo e Volta a Portugal. Colabora com o Correio do Porto desde janeiro de 2015.

Publicado originalmente em 2 de Julho de 2015

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