“QUERIA que as cidades fossem grandiosas, arejadas, banhadas por águas claras, povoadas por seres humanos cujo corpo não tivesse sido deteriorado pelas marcas da miséria ou da servidão, nem pela vaidade de uma riqueza grosseira.”
Assim falava Adriano, o imperador, pela escrita de Margerite Yourcenar[1]. Quando existem livros como este, não interessa que a realidade tenha acontecido ou não desta forma. No que contém de verdadeiramente grandioso sobre a condição humana, sobre o amor, o poder, ou a certeza da morte, a ficção é bem melhor do que o rigor da história para inscrever na eternidade este homem verdadeiramente grande. Mantendo a realidade a uma distância segura de modo a não atrapalhar o que realmente é importante, Yourcenar escreve a longa carta de um moribundo que sonhou com um mundo melhor – Humanitas, Felicitas, Libertas – e que desejava entrar serenamente na outra vida: esforcemo-nos por entrar na morte com os olhos abertos…
Incansável viajante, das Espanhas à Ásia Menor, da Bretanha a Alexandria, do Danúbio ao Nilo onde o amado Antínoo se suicida, a memória de Adriano aparece por todo o lado ecoando as suas perpétuas deambulações: em vinte anos de poder, passei doze sem domicílio fixo. Vivia, alternadamente, nos palácios de mercadores da Ásia, nas tranquilas residências gregas, nas magníficas vilas providas de banhos e calefatores dos romanos residentes na Gália, em cabanas, ou em propriedades rurais. A tenda leve, a arquitetura de lona e cordas, era ainda a preferida. Os navios não eram menos variados que os domicílios terrestres (…) o meu único luxo era a velocidade, e tudo o que a favorecesse..
É no otium, no retiro e na magnificência da Villa Hadriana, apartado das intrigas de Roma, que as inquietações da vida observadas a partir do seu interior se revelam e iluminam a narrativa onde o registo literário prevalece decididamente sobre o histórico para que a fragilidade das coisas que a vida contém encontre o espaço justo para se manifestar, incluindo o inconfessável, aquilo que não se conseguiu ou de que se desistiu: Os poetas transportam-nos a um mundo mais vasto ou mais belo, mais ardente ou mais suave, por isso mesmo diferente do nosso e, na prática, quase inabitável. […] Os historiadores apresentam-nos as imagens do passado através de sistemas excessivamente completos, com uma série de causas e efeitos demasiado exatos e demasiado claros para serem inteiramente verídicos…
A Villa era o locus amoenus de imensos jardins, termas, fontes, canais, terraços, santuários, bibliotecas, palácios, viveiros, cúpulas, torres, estátuas, colunatas, piscinas…, onde o imperador reunia memórias e lugares perfeitos. Como Yourcenar lembra,escrevemos para atacar ou defender um sistema de mundo e é isso que torna o mundo suportável ou até glorioso. Não é a única forma – os jardins também escrevem utopias felizes.
Por isso também fotografamos. Procuramos nos objectos e nas imagens que outros nos oferecem as marcas dos sonhos dos humanos, a expressão dos seus desejos, as colunatas, os mármores, as lagoas azuis que ficarão rasas de águas claras. Bastam alguns sinais para adivinhar o resto.
Por Álvaro Domingues autor de A Rua da Estrada.
[1] Margerite Yourcenar (1951), Mémoires d’Hadrien, Paris. Plon.