ANTES da mancha enorme do musseque de Luanda, a estrada para Malanje segue rarefeita e calma até para as galinhas e sua descendência menor. O caminho-de-ferro cruza quase imperceptivelmente o asfalto; linha de bitola estreita onde só parece caber um comboio de brincar.
Estrada fora por lonjuras de planaltos, capim e árvores esparsas, vão aparecendo aldeias de casas feitas em terra cozida ao sol e cobertura de zinco, pouco mais do que uma porta e uma janela. Uma capela tosca e um sino feito da jante de um automóvel, anunciam um local de culto; as mangueiras e umas mesas improvisadas com bancos são o jango onde se juntam os vizinhos, se organizam trocas, se recebe quem chega e onde deambulam porcos e outra fauna doméstica. Na casa do soba, uma bandeira esfarrapada; às vezes um painel solar, iluminação eléctrica e poço de fornecimento de água. As linhas de alta tensão passam alheadas para se ligarem a outras redes. As cabras voltam pelo asfalto ao fim do dia. As mulheres carregam o inimaginável à cabeça nas suas idas e vindas para a lavra, para a água do cacimbo, para o rio, para a lenha. Os homens, sempre com a catana à cintura, levam outras cargas; de quando em quando, uma bicicleta desconjuntada, uma motorizada ou a vertigem acelerada de um carro de luxo.
A proximidade a Luanda percebe-se pelo movimento e pelos fios eléctricos. Aos poucos a rarefacção interrompe-se. É então que os mercados de berma de estrada aparecem com toda a variedade e algazarra que os caracteriza; cheira a frango assado no carvão e pelo chão espalha-se tudo: batata doce, múcua, laranja, cebolas, tomate, pimentos, couves, limões, carne seca…, tudo devidamente doseado em baldes de plástico ou dividido em pequenas porções. Mais à frente começam a parecer os negócios de estabelecimento aberto: foto digital, barbearia, salão de beleza, farmácia, tabaco, funerária, carregamentos para telemóveis e televisão por cabo, padaria, cantinas, bebidas, artigos de plástico, fotocopias, sacos de carvão, oficinas e peças e acessórios para carros, pneus, chamadas telefónicas, roupa, tijolo, bloco, cimento, areia…
Mil coisas para quem vive com quase nada.
Álvaro Domingues (Melgaço, 1959) é geógrafo e professor na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, onde também é investigador no CEAU-Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo. É autor de A Rua da Estrada, Vida no Campo e Volta a Portugal. Colabora com o Correio do Porto desde janeiro de 2015.
Publicado originalmente em 16 de outubro de 2015