QUANDO não pensamos muito sobre as representações mentais que temos da “cidade” (seja lá o que isso for no meio da variedade de sentidos que lhe assiste), ocorre-nos com relativa facilidade que a dita cidade tem um nome e uma localização no mapa e que se define por ter um centro, uma forma e um limite. Sem esta trilogia, parece que tudo se dissolve em confusões e cartografias imprecisas – faltaria o “todo” da cidade, o corpo, as suas partes e o modo de as entender e relacionar.
Estas clarezas morfológicas, simbólicas e cartográficas já quase não existem. A verdade é que esse todo raramente nos faz falta; normalmente designamos as cidades que nomeamos através de muito poucas coisas da infinidade de que são feitas: uma praça, uma torre, um rio, uma loja… bastam – uma metonímia, a representação do todo pela parte como quando se mostra uma foto da Torre Eiffel e outra do aeroporto de Orly, dizendo estive em Paris, olha.
A cidade perdeu o monopólio da urbanização. Da imponência das muralhas e das portas que durante séculos – milénios, por vezes – definiam os lugares precisos da cidade, resta a inutilidade dessa artilharia pesada do poder que hoje se exprime com outros adereços visíveis e invisíveis.
Sem portas, a urbanização é uma corrente de ar permanente e aquilo que a alimenta – a conexão, o intercâmbio, o movimento ou a relação – percorre e insinua-se, ao perto e ao longe, através das mais diversas espacialidades. Felizmente existe o GPS.
As simbologias e os rituais de passagem e a marcação dos limiares (portas, muralhas, limites) estarão, assim, mais nas descontinuidades do fluxo da mobilidade, do que nas descontinuidades formais: intercâmbios, rótulas ou bifurcações serão marcas expressivas dessa multiplicidade.
Há que tempos que sabemos disso na Rua da Estrada que, justamente, não é um lugar mas uma relação. Por isso não há aqui portas electrónicas e máquinas que falam como nas portagens das auto-estradas. Bate o sol nas bolas e alegram-se os transeuntes.
Por Álvaro Domingues autor de A Rua da Estrada.