FACE ao inferno da fuga de refugiados da loucura instalada na Síria, no Afeganistão, no Iraque, no Sudão, na Etiópia e noutros lugares do mundo onde a desumanização impera, muitos países da civilizadíssima União Europeia resolveram montar um sistema de controlo de fronteiras e circulação de pessoas.
Em vez de se abrirem corredores humanitários para acudir ao drama de quem nada possui e que tudo arriscou para salvar a vida, a União Europeia é mais eficaz em negócios de vistos dourados para permitir a livre circulação de pessoas, bens e capitais no espaço europeu e facilitar o acesso à cidadania. Em havendo dinheiro pode-se passar o Mediterrâneo em cruzeiro e não em jangadas de mafiosos do tráfico humano; em pagando bem, pode-se comprar uma mansão ou uma empresa. Living in Portugal, por exemplo, dá para vender imobiliário, campos de golf, ir à praia, contemplar a natureza e partir à descoberta do património, dos vinhos e de uma gastronomia inigualáveis. É fantástico, aqui só os tontos é que não se acomodam.
Regredimos civilizacionalmente até muito antes da Idade da Pedra Lascada. Agora, poderosos e ameaçadores animais de saudável dentadura, sorriso fácil e permanente verborreia, vigiam as estradas, as fronteiras e as consciências e estão prontos para actuar em caso dos refugiados viajarem com a roupa cheia de nódoas, sem os cintos de segurança devidamente colocados e a falar ao telemóvel, na companhia de animais domésticos maltratados, com hábitos de consumo insustentáveis e elevada pegada ecológica. É assim.
Álvaro Domingues (Melgaço, 1959) é geógrafo e professor na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, onde também é investigador no CEAU-Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo. É autor de A Rua da Estrada, Vida no Campo e Volta a Portugal. Colabora com o Correio do Porto desde janeiro de 2015.
Publicado originalmente em 18 de setembro de 2015