ESTA tendência de alinhar pedras remonta já aos tempos do megalitismo e da cisma que os nossos antepassados remotos tinham de exercitar o espalhamento dos pedregulhos para memória futura acerca das coisas ocultas, da morte, dos astros ou do transcendental. Hoje estes assuntos tratam-se de outros modos.
A cerca feita de pedregulhos em forma de poste e de outros postes de betão saídos de outras tecnologias e materiais, mais o encastelamento de apartamentos em bloco tristonho e desencantado a precisar de pintura, atiram o imaginário para a cena do condomínio fechado da idade da pedra revista e actualizada.
Desconfia-se que na idade da pedra os humanos se organizavam numa espécie de tribos e assim se defendiam uns dos outros enquanto iam resolvendo a vida de todos os dias caçando, deambulando por territórios incertos consoante as necessidades e o trânsito da caça. Como sinal da sua presença apenas nos deixaram construções sem outra funcionalidade que não a simbólica.
Depois de milhares de anos de muita lida, as coisas não mudaram muito no respeitante ao que os humanos pensam uns dos outros. Basicamente, desconfiam. Do tribalismo passaram a organizações sociais mais complexas; especializaram-se, uns fazem umas coisas, outros fazem outras e outros não fazem nada; inventaram os estados e as nações; o dinheiro, as trocas e os negócios; os bancos e as empresas; deixaram de caçar para sobreviver e passaram a ir às compras. Como a idade do gelo terminou, tiveram de inventar as arcas congeladoras para guardar certas compras.
Agora que essa complexidade ameaça confundi-los ao ponto de não saberem quem regula o quê, regrediram ao tribalismo, organizando-se em condomínios residenciais fechados onde esperam defender ciosamente as suas privacidades junto com outros membros da mesma tribo com quem repartem despesas de manutenção e dividem custos de coisas comuns (poucas). Como são evoluídos, não têm de se conhecer uns aos outros par além do polimento dos bons dias, o menino está muito crescido e vi a sua senhora ontem. Confiam no segurança, no porteiro que não conhecem mas que os conhece a todos, nos serviçais e nos dispositivos de vigilância que não conhecem ninguém mas registam tudo e reconhecem códigos e biometrias.
Claro que a fila dos pedregulhos, coisa poderosa, é apenas uma questão de estética e a rede de arame é uma anquilosidade do tempo dos galinheiros. Hoje existem muitas redes sem arames e sem fios que são bastante mais eficazes do que estas mesmo que electrificadas. Que temem estas tribos? Dizem que o crime – não o crime ou os criminosos em abstracto, mas os crimes contra eles, a sua integridade física e os seus bens. Em boa verdade, querem sentir-se seguros, diferentes, à parte. O condomínio distingue, seleciona, controla as vizinhanças indesejáveis e garante relva aparada, garagens limpas e elevadores a funcionar. Quanto maior for o impulso de pensar a sociedade como um arquipélago, mais estas ilhas se esforçam em estender regras e hábitos ou coisas sujeitas a regulação para aplicar entre vizinhos.
Se o Estado o permitir, constituem-se enquanto pequenos enclaves. Na América chamam-se comunidades mas esse é também o nome que dão às favelas no Brasil.
Que longe que estamos do romantismo, digo eu.
SOBRE O AUTOR:
Álvaro Domingues (Melgaço, 1959) é geógrafo e professor na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, onde também é investigador no CEAU-Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo. É autor de A Rua da Estrada, Vida no Campo e Volta a Portugal. Colabora com o Correio do Porto desde janeiro de 2015.